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TESTEMUNHOS DE DENTRO • 3

Rio de Janeiro, 12 de maio de 2023

Imaginem a dor de perder quem você ama. Pensem em viver esse momento sendo totalmente desrespeitado. É sobre questões como essas, que acontecem todos os dias com moradores de favelas, que precisamos refletir.

Desde muito cedo na manhã desta quinta-feira, 11 de maio, um homem, de aproximadamente 60 anos de idade, nos relata estar vivendo uma verdadeira via crucis. Muito emocionado, ele nos conta da morte da sua esposa e das suas tentativas de remover o corpo da casa onde moravam em Nova Holanda, uma das 16 favelas da Maré. Em decorrência da operação policial que começara muito cedo, ele não conseguia ajuda para que o corpo fosse transportado de forma digna.

O morador diz que na quarta-feira (10), à noite, sua esposa quis ficar na sala, ao lado dele assistindo filmes e se distraindo. Eles colocaram um lençol no chão e deitaram, um ao lado do outro, para aproveitar aquele raro momento juntos. Por volta das três horas da manhã, ele ouviu as últimas gargalhadas da sua companheira. Ela parecia feliz. De repente, ele percebe que a voz dela estava ficando fraca, ao mesmo tempo, que começou a vomitar, ficando muito fria, gelada. Foi quando aconteceu o inesperado para aquele dia: a mulher veio a óbito. Nesse momento, já chegava perto das 4 horas da manhã.

O marido, então, desnorteado, sem saber como agir , tampouco, quem procurar para pedir ajuda, a fim de remover o corpo, começa uma peregrinação sem fim. Tomou a iniciativa, falando com um vizinho, de ir até um ponto do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que fica na Avenida Brasil, na altura da entrada da favela da Vila do João. Era um pouco distante da Nova Holanda, mas ele tinha de fazer algo para resolver como a sua companheira sairia do chão da sua casa.

Chegando no ponto do SAMU, ficou sabendo que não havia ambulâncias disponíveis para atendê-lo, pelo fato de estar havendo uma operação policial no território. A segunda alternativa foi se dirigir até o Hospital Federal de Bonsucesso para pedir ajuda. Mais uma vez não conseguiu a orientação que precisava para retirada do corpo. Outra alternativa poderia ser uma das Clínicas da Família que existem na região, mas também devido à operação policial essa, também, não era uma possibilidade. Se fosse um dia comum, sua esposa já teria tido o seu óbito atestado logo nas primeiras horas da manhã por uma dessas Unidades de Saúde e esse senhor já estaria com o trâmite do sepultamento em andamento.

Diante dessa realidade, o direito de ir e vir de moradores, de crianças estudarem, de comerciantes abrirem suas portas foram impactados. Mas tivemos, ainda, uma violação direcionada para esse homem, que não teve o direito de retirar, dignamente, o corpo da sua companheira de vida, do local onde faleceu, dentro de sua própria casa.

Nesse momento difícil e depois de buscar muitos caminhos, esse homem foi acolhido por uma equipe de profissionais da Redes da Maré. Entramos, mais uma vez , em contato com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Nesses casos de morte em casa, só depois que eles atestam o óbito é que o corpo pode ser retirado. Recebemos como retorno que a equipe do SAMU não se deslocaria até a favela para a retirada do corpo, pelo fato de estar ocorrendo uma operação policial.

Diante de mais essa negativa, fomos buscar auxílio jurídico na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, pois algum encaminhamento precisava ser feito. Após três horas de espera, uma terceira tentativa de contato foi realizada com o SAMU, solicitando posicionamento sobre a chegada do carro. Fomos informadas que deveríamos esperar.

Na tentativa de acelerar o processo e dar fim ao desrespeito com a dor daquele homem, acionamos o Ministério Público. Desta vez, fomos fazer essa denúncia grave sobre o que essa família da Nova Holanda estava sofrendo. Depois de pressionarmos bastante, chegou, às 18h, uma equipe do SAMU para, finalmente, atestar o óbito daquela mulher que se encontrava desde às 4h da manhã morta no chão da sua sala. Só a partir desse atestado é que o corpo poderia ser removido, o que somente aconteceu às 23h.

Tudo isso nos deixou perplexos, mais uma vez. Ficamos sem entender o descaso e a falta de respeito com vidas, como dessa mulher, esposa, companheira, mãe, avó, que um dia deu gargalhadas, virou para o lado e nos deixou em busca de respostas que teimamos em procurar.

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