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Nota pública da Redes da Maré sobre ação conjunta em segurança pública dos governos federal e estadual nas favelas da Maré

A Redes da Maré, organização da sociedade civil que atua há mais de 20 anos nas favelas da Maré, no Rio de Janeiro, vem a público compartilhar seu posicionamento a respeito do anúncio, veiculado amplamente pelos meios de comunicação, de possíveis ações policiais conjuntas entre forças federais e estaduais a serem realizadas no conjunto de favelas da Maré, motivadas pela repercussão da reportagem exibida no programa Fantástico, da TV Globo, no último dia 24 de setembro. 

Frente a mais uma situação que coloca os 140 mil moradores da região em um contexto de apreensão e risco, achamos necessário refletir, de forma crítica e cautelosa,  sobre o que tem sido divulgado, tanto a partir do histórico das políticas de segurança pública nas favelas do Rio de Janeiro quanto da nossa atuação e,  também, de outras organizações da sociedade civil -  no sentido de propor  alternativas às estratégias militarizadas e belicistas nestes territórios.   

  As políticas de segurança pública no Brasil têm priorizado, historicamente, o uso da força a partir de uma estratégia que tem se mostrado repetidamente ineficiente, na chamada guerra às drogas nas favelas e periferias do país. Um exemplo foi a ocupação das favelas da Maré pelas Forças Armadas, por quatorze meses, entre 2014 e 2015. É possível afirmar que o uso da força e o custo elevado desta operação (R$1,2 milhão por dia, totalizando R$529 milhões ao final da ocupação) não reduziram a violência armada no território. Ao contrário, teve como consequência a intensificação do poderio bélico e dos confrontos, sem qualquer medida  mais estruturante e eficaz na construção do direito à segurança pública da população.

Outra estratégia comumente utilizada como política estadual de segurança pública é a escolha das operações policiais nas favelas cariocas como principal modo de enfrentamento a grupos armados. Essas intervenções provocam mortes, inúmeras violações de direitos e diversos impactos no cotidiano dos moradores destas regiões. Reportamos detalhadamente o impacto cruel desta política na vida dos moradores por meio da publicação anual, iniciada em 2016, do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, disponível em nosso site. 

 Um dos eixos fundamentais de atuação da Redes da Maré é o Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. Direito que nunca se estabeleceu para moradores de favelas e periferias, assim como tantos outros direitos que não se materializam de forma plena para esta população. Desde 2009, quando este eixo foi criado, temos produzido conhecimento, mobilizado moradores, elaborado ações concretas e influenciado em possíveis políticas públicas para materialização do direito à segurança pública para  populações de favelas e periferias.   

Segundo dados do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, identificamos - desde 2016 - 219 operações policiais e 122 confrontos entre grupos armados, que resultaram em 135 dias sem atividades nas escolas e 153 dias sem atendimentos nas unidades de saúde. Apenas em 2023, as crianças e adolescentes da Maré já perderam 14 dias letivos de aula por conta de confrontos armados. Diante destas violações, a Redes da Maré vem pautando sua atuação, essencialmente, no diálogo com representantes do poder público sobre alternativas a este modelo de atuação policial em favelas. A Ação Civil Pública da Maré (ACP da Maré) e a Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 635 são exemplos de como este diálogo pode contribuir  na redução dos casos de violências e violações de direitos durante operações policiais. 

Por meio do trabalho de monitoramento dos impactos da violência armada no conjunto de favelas da Maré, quando comparados os anos de 2019 e 2020, é possível identificar a redução em 64% no número de operações policiais, 88% na redução das mortes e a diminuição de 72% nos dias sem atendimento nas unidades de saúde,  sobretudo após decisão cautelar da ADPF 635, em 05 de junho de 2020. Implicar o Poder Judiciário e toda sociedade no debate sobre segurança pública nas favelas do Rio de Janeiro tem sido fundamental para a redução das violências e violações de direitos que identificamos durante as operações policiais. 

No bojo das incertezas da última semana, provocadas pelo alinhamento entre o governo federal e o governo estadual para a chamada “Operação Maré”, a Redes da Maré vem a público reforçar a necessidade do cumprimento da legalidade em toda e qualquer atuação policial realizada neste conjunto de favelas, em especial das decisões judiciais já estabelecidas pela ACP da Maré e ADPF 635, acima citadas. Entre outras normas, destacam-se a necessidade de policiais devidamente identificados, utilização de câmeras de vídeo nos uniformes durante as operações, respeito aos horários de aulas, presença de ambulâncias e não utilização dos chamados "caveirões voadores", helicópteros armados com fuzis que não raro fazem disparos a esmo nas favelas.  Além disso, é de fundamental importância compreender como os diferentes entes federativos podem contribuir para a garantia de direitos fundamentais, historicamente negligenciados para a população da Maré e que não podem ser esquecidos neste momento. 

Considerando que a violência é um processo complexo, multicausal e multiescalar, as estratégias de enfrentamento também devem ser sofisticadas e variadas. As respostas devem ser preventivas e integradas, com soluções a médio e longo prazo. Soluções que somente poderão ser eficazes se aplicadas junto a outras estratégias de efetivação de direitos para os moradores destes territórios, para além das ações policiais.

O poder público deve se fazer presente a partir de políticas públicas nas diferentes áreas que estruturam a vida humana, tais como educação, assistência social, saúde, urbanismo, meio ambiente e cultura. Não é possível que a população da Maré, assim como todos os cidadãos de favelas e periferias do País, não tenha seus direitos básicos resguardados. O Estado precisa garantir direitos e preservar a vida de forma definitiva e sem exceção.

Entendemos que esta é uma grande oportunidade para os governos federal e estadual darem um salto de qualidade na política de segurança pública historicamente aplicada nas favelas da Maré e compreenderem a importância e a urgência de colocar em prática uma política cidadã e promotora de direitos. 

 

Redes da Maré

Rio de Janeiro, 04 de outubro de 2023.

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