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TESTEMUNHOS DE DENTRO • 4

Chegamos a 18 de maio de 2023. A cidade do Rio de Janeiro amanhece com nuvens de outono, estação que transita entre o verão e o inverno. Um clima ameno que deixa mais aconchegante o dormir e o despertar. Nesse instante, pessoas estão a caminho do trabalho, da faculdade, daquela consulta médica marcada com muita antecedência e outras, simplesmente, dormem profundamente ou aproveitam o café da manhã. É dia, no conjunto de favelas da Maré, de mais uma operação policial. Ao som de um helicóptero e da circulação de veículos blindados, moradores despertam gradualmente em busca de informações na TV ou nas redes sociais sobre o que está acontecendo. Afinal, já são 12 operações policiais em cinco meses e a segunda em apenas uma semana neste mês de maio.

É muito violento despertar com a sensação de medo e terror quando ocorrem operações policiais ou conflitos entre grupos civis armados. Algo incontrolável pelo histórico vivido e pela impunidade com que as muitas violências cometidas mal chegam a ser registradas. O corpo grita, fica suado mal consegue respirar.

Uma mulher, que mora sozinha no Parque Maré, nos conta que seu portão tinha sido arrombado durante a ação policial em curso. Sua casa fica no segundo andar de uma outra, também invadida pelos agentes das polícias. Quando acessaram a casa dela, a primeira pergunta dos policiais foi sobre como ela, ainda jovem, poderia residir numa casa bem equipada, arrumada e bonita. Neste momento, os policiais solicitaram as notas fiscais dos eletrodomésticos que estavam no imóvel. Já pensou essa cena acontecendo com você? Ter de mostrar comprovantes fiscais de compra da sua geladeira, televisão e sofá para mostrar que não foram roubados ou comprados de forma ilegal?

A jovem, que se desentendeu com pai e a mãe, havia deixado sua casa e fora morar, provisoriamente, nessa casa cedida por um de seus tios. Muito assustada, com tudo que estava vivendo, ela acompanha os policiais na revista abusiva a residência. Acuada, ela testemunha os agentes de segurança pública mexerem e bagunçarem seus pertences, deixando-os espalhados pela casa.

Quando a mulher relata porque morava naquela casa, os policiais dizem que precisam ver o tio dela. Ele é avisado sobre o que estava ocorrendo por vizinhos e chega no momento em que os policiais ainda estavam dentro da casa com a jovem. Sem entender o que estava acontecendo, nervoso, o homem se revolta e grita dizendo que a casa bonita foi construída com muito esforço e suor. Embargando a voz, ele diz que pelo fato de morar numa favela, isso não era motivo para viver em condições precárias. Que era um preconceito dos policiais agirem daquele modo. Foi quando o senhor foi buscar todas as notas fiscais dos utensílios domésticos que tinha na sua casa. Mostrou aos policiais as notas fiscais e disse que tudo que conseguia comprar guardava sempre o comprovante de pagamento, pois, na favela, infelizmente, todos os moradores são considerados suspeitos e sempre acusados, muitas vezes, sem mesmo ter qualquer envolvimento com atividade ilícita. Basta morar na favela que você é potencial marginal.

Nos dias de operação policial, é muito perceptível o julgamento moral e estereotipado em relação aos moradores de favela. Identificamos nessa postura, o desrespeito e o não reconhecimento dos direitos de quem mora em regiões da cidade onde esses direitos não estão ainda efetivados. Regiões da cidade, aliás, que os governos se eximem da sua responsabilidade com a população. Será que em outras partes da cidade, que não nas favelas, policiais se sentiriam autorizados a entrar numa casa sem mandado judicial, revirá-la, pedirem notas fiscais para comprovar a compra dos eletrodomésticos e nada acontecer?

O relato dessa jovem e de tantas outras pessoas, como temos acompanhado nas últimas edições do "Testemunhos de Dentro”, nos dá a dimensão sobre a tamanha falta de respeito com as populações de favelas. Constatamos com muita tristeza que, infelizmente, essas violações acontecem porque não nos reconhecemos, moradores de uma mesma cidade, a partir dos mesmos lugares de direitos. Isso faz com que achemos "natural" que tenhamos notícias como essas, todos os dias, sobre fatos que só atingem moradores de favelas. Esse dia, certamente ficará marcado na memória dessa menina, que na sua pouca idade , 19 anos, já experimentou ser rotulada e julgada como suspeita em potencial, simplesmente, por ter a ousadia de morar numa casa bonita com um CEP que a localiza em uma das 16 favelas da Maré.

 

Rio de Janeiro, 19 de maio de 2023

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