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"Operação Maré": o que sabemos sobre seus impactos

Os dias 09, 10 e 11 de outubro foram marcados por operações policiais no conjunto de favelas da Maré. As ações aconteceram de forma articulada entre as polícias civil e militar e amplamente propagadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro como uma solução inovadora e estratégica para a desarticulação das redes ilícitas e criminosas que se instalaram na região. Denominada como “Operação Maré", a ação vem sendo repercutida pelo próprio Governo e por grande parte dos veículos de comunicação como uma intervenção bem-sucedida.

Muitos jornalistas acompanharam as intervenções policiais no conjunto de favelas da Maré, tendo, no primeiro dia, especialmente, uma cobertura mais significativa que nos dois seguintes. Talvez, por isso, o número maior de violações e violências identificadas tenha ocorrido, justamente, nos dias em que a imprensa se fez menos presente. Isso pode ser um sinal sobre a importância da pressão popular e o controle do Ministério Público sobre a atividade policial, algo aliás que é a sua função constitucional, mas que não vemos ocorrer como deveria ser.

Na segunda-feira (09), os meios de comunicação acompanharam quase que simultaneamente cada passo da operação com transmissões ao vivo, através de helicópteros, e com bases móveis nos acessos e dentro das favelas da Maré. Noticiaram o sucesso da "retomada do controle do estado", repercutindo a narrativa oficial do governo. Isso ocorre depois de mais de duas semanas da veiculação de uma reportagem realizada por um programa nacional da TV Globo, que é exibido semanalmente e de grande audiência. Essa matéria tem como pano de fundo a identificação de um espaço de lazer que supostamente seria público e estaria sendo privatizado por um dos grupos armados que atua na região, que, para além do uso recreativo, utilizava-o para treinamento bélico. Foi pontuado, ainda, na matéria jornalística, que a identificação da área de lazer é fruto de uma investigação da polícia civil, de dois anos, sobre a movimentação das redes ilícitas na região.

O discurso moderado do governo repercutiu em grande parte da atuação dos agentes dentro do território. Foram registrados poucos casos de violações de direitos no primeiro dia de operação. Historicamente, em um dia de intervenção policial, muitos direitos individuais e coletivos são violados. No segundo dia, com menos acompanhamento da imprensa, a operação volta a adquirir o padrão dos últimos anos, com muitos relatos de invasões de domicílios e inclusive com a morte de uma pessoa, em situação que indica execução. Já no terceiro dia, foram registradas muitas violações de direitos, sobretudo, praticadas por agentes dos grupos de elite das polícias, que não estão utilizando câmeras corporais. Nossa percepção é que ao passar dos dias, o assunto deixa de ser uma novidade, e o papel da mídia de comunicar e exercer pressão para a execução de políticas públicas de qualidade vai enfraquecendo. Apesar dos esforços das organizações locais, ao apontar o que realmente vem acontecendo nas favelas da Maré, os meios de comunicação basicamente reproduziram o balanço oficial do governo.

O governo do estado do Rio de Janeiro já investiu, desde 2021, R$1,5 bilhão, especificamente, em equipamentos tecnológicos como câmeras portáteis para uniformes, veículos semi blindados, drones etc. Nos últimos dias, o drone se tornou a imagem recorrente nos céus de algumas favelas da cidade. Por terra, mais de 1000 agentes da segurança pública foram mobilizados e, segundo o Governo, todos equipados com câmeras corporais individuais.

O balanço das operações vem sendo diariamente atualizado no site e redes sociais oficiais do Governo do Estado do Rio de Janeiro. A ênfase, contudo, infelizmente, é dada para aspectos que se relacionam a apreensões de drogas e armas, que aliás foram insignificantes em termos de volume para justificar os impactos causados no cotidiano de milhares de moradores, com prejuízos materiais e também psicológicos. Um plano de ação que detalhasse os objetivos, a relevância, o cronograma e os recursos a serem destinados às operações a curto, médio e longo prazos não foi publicizado pelas autoridades do Estado.

As operações policiais dos últimos três dias se concentraram em 13 favelas da Maré, nas quais dois grupos armados atuam com a venda de drogas no varejo e o uso de armas. A narrativa apresentada é a de defesa desses locais do comércio de entorpecentes. Não tivemos, contudo, ações nas favelas onde o grupo conhecido como milícia tem suas atividades.

Nessa perspectiva, é preciso questionar a seletividade territorial das ações policiais, historicamente, no Conjunto de Favelas da Maré, que, muitas vezes, contrariam evidências e indicadores produzidos pelas próprias polícias. Isso deve ser considerado para além da região da Maré, num olhar para toda a cidade do Rio de Janeiro. Nesta semana, por exemplo, nas operações policiais nas favelas da Maré, foram apreendidos 13 fuzis, anunciados como uma das demonstrações de um desempenho satisfatório da atuação das polícias. Ao mesmo tempo, a Polícia Federal apreendeu 47 fuzis, quase quatro vezes mais que nas favelas da Maré, além de carros de luxo, numa mansão no bairro da Barra da Tijuca.

Se atribui, recorrentemente, que é somente no bairro Maré ou nas favelas, de modo geral, que o crime, dito organizado, se faz presente e o seu combate somente pode ser feito pela força e poderio bélico. Ou seja, há uma crença de que é apenas nas favelas e periferias que estão as redes ilícitas e criminosas, e, talvez por isso, é nas favelas da Maré, e não na Barra, que a população é submetida ao terror de operações policiais e violações de direitos generalizadas.

 

Foto: Fabiola Loreiro

Nestas últimas operações policiais em algumas das favelas da Maré, constatamos que em torno de 120 mil pessoas foram impactadas diretamente, das 140 mil que residem na região. Foram 13 favelas, das 16 existentes, onde temos 44 escolas municipais e 4 estaduais, o que deixou mais de 18 mil alunos sem aulas durante três dias. Em relação às Unidades Básicas de Saúde, cinco, das sete existentes, deixaram de realizar mais de 2.500 atendimentos durante estes três dias.

Outras atividades no campo dos projetos sociais, educacionais, esportivos e culturais, desenvolvidas pela Redes da Maré e demais instituições da sociedade civil, também foram impactadas, além do comércio que não pôde funcionar integralmente, apesar da narrativa veiculada de que as operações policiais foram bem sucedidas e da afirmação do atual governador do Estado do Rio de Janeiro de que tem respeitado as determinações do STF no âmbito da ADPF 635 (ação que regulamenta as ações policiais em favelas).

No entanto, muitas violações de direitos foram identificadas na "Operação Maré". Tivemos registro de, pelo menos, quatro invasões de domicílio, três danos ao patrimônio, três eventos de subtração de pertences, duas ocorrências de violências físicas, uma pessoa ferida e, lamentavelmente, a retirada de uma vida. Outros descumprimentos da ADPF 635 também foram observados: ausência de ambulância nos dias 10 e 11/10, inexistência de câmeras corporais nas equipes dos batalhões especiais das polícias e a falta de perícia no local da morte.

É importante pontuar os danos causados à saúde mental dos moradores nas favelas da Maré com o contexto de insegurança que se instalou. Em todos os atendimentos realizados pelas equipes da Redes da Maré, nesses três dias de operações policiais, os moradores relatam quadros de adoecimento mental, causado pela sensação de terror, dúvida e incertezas que essas operações provocam.

A pesquisa Construindo Pontes, realizada em 2019, através de uma parceria entre a Redes da Maré, a Queen Mary University, o People's Palace Projects e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre o impacto da violência na saúde mental da população das favelas da Maré, apontou que, entre os entrevistados, 31% perceberam prejuízos à saúde mental e emocional decorrentes da exposição à violência armada, incluindo manifestações de episódios depressivos (26%) e ansiedade (25,5%) nos três meses anteriores à pesquisa. As consequências, sem dúvida, vão recair sobre o sistema de saúde, em demanda de atendimento psicológico e psiquiátrico e outras necessidades, como remédios.

Um argumento muito utilizado na tentativa de justificar as incursões policiais é a necessidade de devolver aos moradores espaços de cultura, arte e lazer. Porém, o que não costuma ser observado é que estas ações interrompem um fluxo intenso de atividades, que já acontecem, de garantia do direito à arte, à cultura e à construção de memórias e identidades por parte dos moradores das favelas da Maré.

Equipamentos como a Biblioteca Lima Barreto, Centro de Artes da Maré, Biblioteca Jorge Amado e Casa Preta da Maré tiveram suas ações paralisadas. A Lona Cultural Municipal Herbert Vianna - único equipamento público de cultura do território - também suspendeu atividades. Foram mais de 450 pessoas privadas do direito de se expressar culturalmente. Entre elas, um público majoritariamente composto por crianças. Não é possível “devolver” cultura e lazer para uma população no mesmo passo em que se atravessa seus processos de autonomia cultural.

Assim como a cultura, a educação é um direito básico e fundamental que também foi diretamente afetado pela “Operação Maré”. Dos 208 dias letivos previstos para 2023, os estudantes da Maré já perderam cerca de 9% por conta de confrontos armados e operações policiais. Nos perguntamos como serão repostos esses dias sem aulas.

Além da evidente perda de conteúdos programáticos e do espaço de sociabilidade e construção política que a escola propicia, são observados sinais de ansiedade e desesperança em moradores ainda muito jovens. É importante destacar que foi na região das favelas da Maré que o jovem Marcus Vinicius da Silva, de 14 anos, foi morto no caminho da escola, no contexto de uma operação policial. Marcus vestia o uniforme das escolas municipais do Rio de Janeiro. Esta dolorosa lembrança é recorrente nas memórias de estudantes e famílias em dias como os que vivemos. Além disso, as últimas investidas das polícias foram feitas na semana do dia das crianças, ocasionando a suspensão de atividades culturais e simbólicas pautadas na ludicidade. É crucial que as crianças da região da Maré tenham direito a uma infância plena.

É fundamental que, enquanto sociedade, questionemos não apenas a eficácia dessas operações, mas também sua ética. A seletividade, a falta de transparência e os impactos devastadores sobre as populações das favelas da Maré e demais territórios populares levantam sérias dúvidas sobre a abordagem atual das autoridades. A justificativa de busca por "segurança e justiça" não deve sacrificar os direitos, a dignidade e a saúde mental das moradoras e dos moradores das favelas da Maré. É fundamental que as soluções sejam verdadeiramente justas e equitativas, através de esforços conjuntos de diferentes políticas públicas, em diversos níveis, para garantir condições de vida efetivamente mais seguras e saudáveis para todas as pessoas.

 

Redes da Maré

   

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2023

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