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A França garantiu na sua constituição o direito ao aborto. E nós, onde estamos nesse debate?

"A inscrição do direito ao aborto como um direito constitucional na França é relevante porque faz a integração e nivelação de direitos políticos, sociais e reprodutivos como igualmente fundamentais."

Por Julia Leal, coordenadora da Casa das Mulheres da Maré e Carla de Castro, pesquisadora do projeto Onda Verde
*O projeto Onda Verde integra a Casa das Mulheres da Maré, um equipamento da ONG Redes da Maré

O dia 4 de março de 2024 foi um dia histórico na luta global por justiça reprodutiva para as mulheres e pessoas com capacidade de gestar. O parlamento da França aprovou a inclusão do direito ao aborto na constituição do país. Esta é a primeira vez no mundo em que este direito é garantido em uma constituição nacional, que é a lei máxima e o ponto mais alto da hierarquia das normas jurídicas de um Estado Democrático de Direito. Para a Redes da Maré, o acesso a direitos sexuais e reprodutivos, inclusive ao aborto seguro e de qualidade, é uma questão de justiça social.

O aborto foi legalizado na França em 1975 por meio da Lei Simone Veil, que descriminalizou a interrupção da gestação até 10 semanas e definiu ainda os protocolos de atendimento nos estabelecimentos de saúde. Ao longo desses quase 50 anos, a Lei Veil foi aperfeiçoada e agora, ao garantir o direito ao aborto na sua constituição, a França protege suas cidadãs de possíveis retrocessos em leis infraconstitucionais, como ocorreu nos Estados Unidos recentemente após pressão de setores contrários aos direitos das mulheres.

 

Foto: Gabi Lino

 

O direito ao aborto é um dos componentes dos Direitos Reprodutivos, que tratam do direito que toda pessoa tem de determinar se quer ou não ter filhos/as, quantos, quando e como. Além do acesso a formas legais e seguras de interromper a gravidez quando esta for a decisão da pessoa gestante, os Direitos Reprodutivos também incluem o direito ao planejamento familiar livre e sem coerção e o direito à gestação e ao parto livres de violência.

A efetivação desses direitos certamente depende da criação de leis que respeitem as decisões reprodutivas das pessoas, como acaba de fazer a França ao incluir na sua constituição “a liberdade garantida de recorrer ao aborto”. No entanto, em sociedades tão desiguais como a brasileira, essas decisões reprodutivas não apenas são dificultadas por leis restritivas e criminalizantes, como também são exercidas sob condições muito díspares. Ter e criar filhos, planejar ou interromper uma gestação podem ser experiências radicalmente diferentes a depender de seu gênero, raça, cor, território, orientação sexual, idade ou renda.

Uma pesquisa sobre os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras realizada pela ONG Criola, entre 2020 e 2021, aponta que essas mulheres, ao ponderarem suas decisões reprodutivas, precisam lidar com a realidade da fome, da falta de saneamento, do desemprego, do acesso precário à saúde e à educação, além de estarem mais expostas a diferentes formas de violência. Para garantir a reprodução da vida humana, a sua e de suas famílias, essas e outras mulheres em situação de precarização de direitos, como as moradoras de favelas, não contam com as mesmas condições e opções para decidir que outras mulheres em condições de privilégio. A noção de Justiça Reprodutiva apresenta justamente essa perspectiva, de que os Direitos Reprodutivos são inseparáveis da justiça social, e vice-versa.

A inscrição do direito ao aborto como um direito constitucional na França é relevante porque faz a integração e nivelação de direitos políticos, sociais e reprodutivos como igualmente fundamentais. A Constituição Brasileira de 1988 tem como alguns de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, a liberdade de consciência, o direito à saúde, educação, lazer e o combate às desigualdades. E, no entanto, são muitas as lacunas nas leis infraconstitucionais e nas políticas públicas que violam ou impedem a concretização desses preceitos. Uma delas é o fato de que o aborto segue sendo matéria criminal, e não de direito.

 

Mesmo nos poucos casos em que o código penal e o STF permitem o aborto (estupro, risco à vida da gestante e fetos com anencefalia), este direito tem sido sistematicamente negado. Alguns dias antes da conquista francesa, vereadores do Rio de Janeiro rejeitaram o projeto de Lei n.16 de 2017, de autoria de Marielle Franco, que tão somente prevê medidas para garantir atendimento de saúde adequado para mulheres e gestantes que se enquadrem nos casos de aborto legal e decidam interromper a gravidez. O próprio debate sobre aborto é interditado por pânicos morais que em nada correspondem às realidades, necessidades e desejos das mulheres e pessoas com capacidade de gestar. Sem falar na falta de uma política de educação sexual, nas longas filas para acessar DIU, nas altas taxas de mortalidade materna e violência obstétrica.

A Redes da Maré reafirma que a descriminalização do aborto é uma questão de justiça social para mulheres negras e faveladas. Que o exemplo das conquistas na França reverbere no Brasil e deixemos de falar de aborto apenas em narrativas que disputam sobre ser ou não um crime, mas sim concebido dentro de um conjunto de direitos, sem riscos de retrocesso.

 

Redes da Maré

Rio de Janeiro, 08 de março de 2024

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