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Pelo direito de viver em segurança: estratégias de enfrentamento às múltiplas violências nas favelas da Maré

Por: Aristênio Gomes Pesquisador Redes da Maré, Felipe Souza Assistente de pesquisa Redes da Maré, Isabel Barbosa Pesquisadora Redes da Maré, Julian Brigstocke Professor Cardiff University, Luiz Carlos B. J. Junior Pesquisador Redes da Maré, Maykon Sardinha Pesquisador Redes da Maré, Thays dos Santos Pinto Pesquisadora Redes da Maré

 

Como resultado da atuação histórica de diferentes movimentos sociais em prol da ampliação dos direitos das mulheres, o mês de março tem se consolidado como um momento em que o debate público volta-se para esta pauta, torna-se no contexto em que vivenciamos um boom de comerciais que vendem cosméticos na grande mídia ao mesmo tempo em que os movimentos ligados aos direitos humanos buscam colocar na ordem do dia o combate às desigualdades de gênero, raciais, de classe e territoriais.

Estas desigualdades afetam sobremaneira a efetivação dos direitos da população e estão ligadas a forma com que a sociedade brasileira se estrutura. Para compreender de fato a realidade das mulheres, é necessário visualizar essas relações em sua intersecção. Se quisermos que mulheres faveladas, por exemplo, tenham acesso aos seus direitos, precisamos compreender quais são as barreiras para o acesso. Nesse contexto, surgem questionamentos como por exemplo: A manutenção dos papéis de gênero expõe de alguma forma os diferentes corpos à situação de violência? A que tipos de violência? Quais corpos? O fato de uma mulher residir em território de favela afeta de alguma forma seu acesso a serviços de proteção e cuidado? A falta de acesso à direitos é um fator de exposição à violência? Estas são algumas questões que perpassam o trabalho das instituições que atuam na rede de proteção e cuidado nas favelas da Maré.

Nos últimos anos, o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, tem realizado o monitoramento das múltiplas violências sofridas pelos moradores das favelas da Maré. O objetivo central é produzir conhecimento e sistematizar informações sobre as diversas formas de violência e violações de direitos que afetam uma população de mais de 140.000 pessoas que vivem neste conjunto de favelas. Através do projeto De Olho na Maré, as informações são coletadas a partir da contribuição das equipes sociojurídicas e psicossociais que registram os acolhimentos, atendimentos e acompanhamentos realizados com moradores que relatam as violações sofridas. São pessoas que testemunham e registram as violências associadas a questões como gênero, mobilidade, saúde mental, racismo, entre outras.

A sistematização deste monitoramento culmina no Boletim de Monitoramento e Enfrentamento às Violências nas Favelas da Maré, cuja segunda edição foi lançada neste mês de março. Pensando em incidir de maneira qualificada na mudança desta realidade, a sistematização destes dados é uma das estratégias da Redes da Maré para refletir sobre a sua atuação a partir de evidências e informações seguras que levem a um processo de incidência nas políticas públicas. Isso não significa que todos os casos de violência que ocorrem nas favelas da Maré estão monitorados e publicados neste boletim, mas o esforço é exatamente de trazer elementos que contribuam para o fortalecimento da rede de proteção social. Além do intuito de trazer narrativas contra hegemônicas e que desnaturalizem estas violências por conta do local de moradia de suas vítimas.

Diferente da visão que comumente se tem sobre os territórios favelados, a principal violência identificada entre os anos de 2021 e 2022 pelas equipes de atendimento da Redes da Maré foi a violência baseada em gênero, sendo 42% dos casos atendidos. As agressões direcionadas contra as mulheres são problemas históricos e sistemáticos, que se reproduzem ao longo do tempo. As violações são justificadas em razão da condição feminina das vítimas, que as coloca constantemente em risco. Essa violência tem origem na desigualdade de gênero na sociedade, ocorrendo principalmente no ambiente doméstico e sendo praticada por companheiros ou ex-companheiros.

Principalmente no período de pandemia de COVID-19, na qual o isolamento social tornou-se uma das principais medidas de proteção ao vírus, o convívio com os autores da violência doméstica se acentuou. O contexto de violência armada também agrava esta situação, uma vez que afeta o acesso a sistemas de proteção social. Foram muitos os relatos de mulheres que buscaram acessar a Lei Maria da Penha e ouviram dos profissionais que a atenderam que a medida protetiva não tem efetividade no território onde mora. Isto porque, a estratégia de segurança pública para este território se limita a operações policiais militarizadas. Alguns serviços do sistema de justiça também se negam a entrar no território. Através dos dados trazidos pelas duas edições do boletim, nota-se que alguns grupos estão em uma situação de maior vulnerabilidade e suscetíveis à violência que outros. Destacam-se, além do grupo “mulheres” acima sinalizado, a juventude negra, a população em situação de rua, a população LGBTQIA+, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes. Ao pensarmos de modo interseccional, homens e mulheres negras (pessoas pretas e pardas) são os mais impactados pela violência, uma vez que o racismo é um dos principais elementos propulsores da história de violações de direitos cometidos em favelas e periferias.

Tratando-se da violência armada, este é um atravessador que impacta todos os públicos, mas principalmente a população negra. O racismo é o principal fator que estigmatiza a população negra, especialmente homens e moradores de favela, como parte das "classes perigosas". Embora não haja associação biológica entre raça e criminalidade, a imagem do homem negro ainda é relacionada à criminalidade em diversos espaços sociais, impactando na suspeição policial e na alta letalidade dessa população em operações policiais, especialmente na Maré. Dos homens vítimas de violência mapeados entre 2022 e 2023, 67% eram negros e 81% sofreram violência armada. A letalidade policial afeta também os familiares dessas vítimas, especialmente as mães que sofrem com a dor da perda, da criminalização de seus filhos, a falta de acesso à justiça e políticas de cuidado.

O monitoramento das diversas formas de violência na Maré revela a importância de ir além dos números, enxergando as pessoas e suas trajetórias de vida. Isso destaca que a garantia do direito à segurança pública vai além da abordagem focada no confronto armado, predominante no Rio de Janeiro. Os desafios enfrentados incluem a presença de redes ilícitas e criminosas que exercem o controle armado dos territórios e a ação militarizada do Estado, que viola direitos legais e afeta o cotidiano das favelas.

Os boletins apontam a necessidade de abordar diversos temas no debate sobre segurança pública nas favelas, incluindo a violência de gênero sob uma ótica de justiça reparatória. Essas políticas devem respeitar os direitos dos moradores das favelas e atender às suas demandas, integrando-se a políticas públicas de saúde mental, saúde física, capacitação profissional, cultura, micro empreendedorismo e conscientização social sobre diversas formas de discriminação. É crucial criar espaços seguros que acolham grupos com identidades específicas, acima citadas, e promovam sua confiança.

Deste modo, é preciso pensar em uma articulação entre iniciativas do poder público e das organizações sociais, que desenvolvem hoje um trabalho que deveria ser do Estado, para aproveitar ao máximo os potenciais culturais, educacionais, de saúde e esportivos já presentes na Maré. Isso inclui, também, a chegada de outras instituições públicas importantes, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e os Centros de Referência de Assistência Social, para fortalecer o suporte básico e especializado. Contudo, as políticas públicas devem fazer parte de um projeto mais amplo e colaborativo para lidar efetivamente com os desafios de segurança nas favelas, buscando respeitar e garantir a todos o direito de ter direitos.

Referências:

REDES DA MARÉ. 1 ed, 2021-2022. Rio de Janeiro: Redes da Maré, 2022. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_Boletim_Monitoramento.pdf

REDES DA MARÉ. Boletim de Monitoramento e Enfrentamento às Violências nas favelas da Maré, 2 ed, 2022-2023. Rio de Janeiro: Redes da Maré, 2024.

SILVA, B. et al. Violências, corpo e território: sobre a vida de mulheres da Maré. Cardiff University, University of Warwick, Unidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Redes da Maré, 2023. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/VidaMulheresMare_pesquisa.pdf

 

 

Rio de Janeiro, 28 de março de 2024.

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