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Entrevista • #Vacina Maré: união da ciência, saúde e mobilização

Por Julia Bruce

Com edição de Andréa Blum e revisão de Luiz Assumpção

 

A Campanha vacinou em seis dias cerca de 37 mil moradores acima de 18 anos.

Segunda dose está marcada para 14 a 16.10!

Veja mais no site do Vacina Maré.

 

Raphael Vicente

Raphael Vicente, influenciador digital mareense que contribuiu com a mobilização da campanha e foi um dos primeiros jovens a serem vacinados no primeiro dia da #VacinaMaré. Foto: Patrick Marinho.

 

“É uma dose de esperança! Graças a Deus a gente não perdeu ninguém da família, tentamos ficar o máximo possível dentro de casa, mas conhecemos muitas pessoas que perderam mãe, filhos, e é muito triste. É um medo diário!”, conta Luana Ricardo, 29 anos, nascida e criada na Vila dos Pinheiros. Ela faz parte dos 36.926 mareenses vacinados nos seis dias de vacinação em massa contra a Covid-19, a campanha Vacina Maré, a primeira em uma favela do Brasil a imunizar todos os moradores entre 18 e 33 anos. A ação aconteceu de 29/07 a 01/08 e ganhou ainda mais três dias de repescagem, de 02 a 04/08, com direito a um mutirão de busca ativa pelo território, de porta em porta, por moradores que ainda não tinham tomado a primeira dose.

 

 

A meta da campanha era vacinar 31% da população adulta (31 mil), e acabou sendo atingida já no terceiro dia, representando 99,14% do público-alvo atendido, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). A mesma decidiu estender por mais três dias o calendário praticado neste mutirão e alargou o grupo vacinado para quase 37 mil pessoas. A iniciativa, inédita, foi realizada pela Redes da Maré com a FioCruz e Secretaria Municipal de Saúde e faz parte de um estudo liderado pela FioCruz, que vai avaliar o efeito da vacinação, monitorar a circulação de novas variantes, além de promover um acompanhamento em saúde de 2 mil famílias, durante seis meses, para estudar e mapear a transmissão do vírus no ambiente familiar.

 

Este estudo vai auxiliar ainda na avaliação da proteção das crianças, pois trata-se de um grupo ainda não vacinado. “Queremos entender o quanto a proteção dos adultos preservam as crianças ou o quanto as crianças ainda vão estar suscetíveis à Covid-19”, comenta o coordenador do estudo, Fernando Bozza. O Conjunto de 16 favelas da Maré tem cerca de 140 mil moradores, com maioria jovem (51,9% têm menos de 30 anos), de acordo com o Censo Populacional da Maré. Durante esse último ano, com os esforços também do projeto Conexão Saúde, a taxa de letalidade caiu em 88%.

 

Coletiva Fiocruz

Coletiva de imprensa realizada no primeiro dia da vacinação (29/07), na Clínica da Família Adib Jatene, na Vila dos Pinheiros.

Da esquerda para a direita: Daniel Soranz, secretário de Saúde, Renan Ferreirinha, secretário de Educação, Fernando Bozza, coordenador do estudo da FioCruz, e Eliana Sousa, diretora e fundadora da Redes da Maré. Foto: Gabriela Lino

 

O estudo é um desdobramento de uma série de ações junto à população da Maré que vêm sendo feitas para lidar com a prevenção da Covid-19. No começo de 2020, ações de comunicação no território foram estendidas para várias frentes para conter o avanço do vírus, que envolvem telemedicina, com consultas online para moradores da Maré, testagem gratuita, com a instalação de um polo de testagem e outros itinerantes, e o apoio ao isolamento familiar seguro, que orienta e oferece suporte para famílias que tenham pessoas contaminadas. Essas ações compõem o projeto Conexão Saúde: de olho na Covid, que reúne a Redes da Maré, FioCcruz, Dados do Bem (aplicativo que monitora a evolução da Covid-19 na população de centros urbanos), SAS Brasil, União Rio e Conselho Municipal de Manguinhos. “Ao longo desse último ano, temos trabalhado os dados de notificação e testagem da Maré. Hoje, podemos dizer que mais de 35 mil testes de PCR foram realizados e cerca de 900 famílias acompanhadas. Mas, do ponto de vista da vacinação, a Maré ainda estava abaixo do restante da cidade. Por isso, ficamos bastante conscientes da necessidade de acelerar a vacinação, e também atender muita gente que não voltou para tomar a segunda dose”, reforça Bozza.

 

A união de forças por um objetivo comum

 

A ação é resultado de muito esforço e trabalho da Redes da Maré juntamente com as organizações do território, como as 14 associações de moradores, que realizaram o pré-cadastro da população nas Clínicas da Família (CF), e as ONGs Observatório de Favelas, Luta pela Paz e Uerê, que ajudaram nos processos de mobilização online e presencial, mais a cessão de voluntários. Também fizeram parte dessa trajetória as Unidades de Saúde da Famílias, com voluntários, e as escolas, que serviram como postos de vacinação, além de comunicadores e influenciadores digitais fortalecendo a mobilização dos moradores. A diretora e fundadora da Redes, Eliana Sousa, considera o momento “singular”: “essa vacinação em massa acontece dentro de uma perspectiva, de um processo que fomos construindo de enfrentamento, especificamente, da pandemia, em que começamos com diversas ações e buscamos parcerias”.

 

Lidiane Malanquini, que está há 6 anos na Redes da Maré, e ficou à frente de toda a mobilização territorial durante a ação, contou sobre a campanha: “Quando essa galera toda se une é para um bem maior que é a imunização em massa da Maré. Eu não fico surpresa, porque aprendi que a Maré é tão potente com os processos de mobilização, mas fico muito emocionada. Vacinar mais de 36 mil pessoas é vacinar mais que uma cidade de pequeno porte no Brasil!”.

 

A campanha de vacinação em massa mobilizou, ao todo, 145 pontos de vacinação, incluindo Clínicas da Família (CF), Centros Municipais de Saúde, associações de moradores, escolas municipais do território, e até a Vila Olímpica da Maré. Desses locais, quatro foram utilizados como pontos para cadastrar moradores para participar do estudo (Clínica da Família Adib Jatene, CF Américo Veloso, CF Diniz Batista dos Santos e Escola Municipal IV Centenário). As famílias preencheram um questionário, um termo de compromisso e realizaram o chamado teste sorológico ou de anticorpos para a Covid-19. Nos dias de campanha, 1.640 pessoas foram entrevistadas e testadas, de acordo com o professor associado do departamento de Engenharia Industrial da PUC-Rio, Silvio Hamacher, um dos coordenadores da pesquisa: “É fundamental a experiência pessoal, entender cada caso individual. Chama atenção a questão da saúde mental, que parece ser bastante central para várias das pessoas com quem conversamos”, aponta. A equipe de pesquisa continuará realizando uma busca ativa por famílias para serem acompanhadas.

 

Ao longo dos próximos meses, a equipe estará em constante contato com os moradores para a realização de outros exames, consolidando os dados dos familiares, para compor um banco de 8.000 pessoas. O acompanhamento vai envolver ainda novos testes em três e seis meses após a vacinação. De acordo com o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, dentro desse processo, também será feita a coleta de exame de sangue para verificar se as pessoas já foram expostas à Covid-19, e como essa proteção e esses anticorpos vão continuar ao longo do tempo - parte relevante da pesquisa que possibilitará conseguir mais dados do comportamento da vacina AstraZeneca na população.

 

No penúltimo dia de campanha (03/08), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o ministro do Turismo, Gilson Machado, também estiveram presentes em mais uma coletiva de imprensa, na CF Adib Jatene. Queiroga afirmou que durante esse período da vacinação, o número de mortes e dos casos de Covid-19 diminuíram 40%. "Essa é a melhor estratégia para conter a pandemia e as possíveis variantes. Para que isso aconteça, só há uma forma: o apoio da ciência e a união dos gestores públicos. Nós sabemos da nossa responsabilidade e vamos cumprir ao pé da letra. É o que a população espera de nós”, comunicou o ministro. Conforme a 40ª edição do Boletim Conexão Saúde - De Olho no Corona, o número de moradores vacinados após a #VacinaMaré aumentou 359%, comparado aos 14 dias anteriores. A segunda dose será realizada em outubro.

 

A trajetória de mobilização da #VacinaMaré

 

O assessor de Relações Interinstitucionais da FioCruz, Valcler Rangel, foi um dos atores que viveu a experiência do trabalho de mobilização territorial da Redes da Maré: “estou participando um pouco do estudo, um pouco da organização da campanha, e dentro do Conexão Saúde como um dos coordenadores desse processo, e uma das coisas que vimos era que não podia ter papel, essa foi a primeira decisão. A gente tinha que botar tudo dentro de computador, de tablet. Então, até a véspera do primeiro dia de vacinação, estávamos trabalhando, pois tivemos que conseguir mais de 100 tablets para espalhar em todos os lugares”, descreve.

 

Ele explica que a equipe tomou a decisão de fazer a ação de vacinação em massa com apenas um mês antes de antecedência: “Viemos nos preparando há um tempo, mas tomar uma decisão, saber que a gente já teve disponibilidade de vacina, a Secretaria Municipal de Saúde se engajando… No início, nossa preocupação era de quantas pessoas a gente ia poder contar para trabalhar.” Contudo, parceria foi a palavra-chave da #VacinaMaré.

 

Douglas Lopes

Reunião de mobilização para o pré-cadastro no Centro de Artes da Maré (CAM). Foto: Douglas Lopes

 

Foram mais de 1.620 voluntários da Redes da Maré, da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que mobilizou servidores de várias regiões do Rio de Janeiro para atuarem na organização, da equipe de Bio Manguinhos, com as entregas das vacinas em tempo recorde, de comunicadores locais, 500 profissionais da Prefeitura, entre outros atores. O secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, informou em coletiva de imprensa realizada no primeiro dia de vacinação (29/07), que 17 escolas serviram como postos de vacinação e mais de 300 voluntários do setor trabalharam durante a ação. “Para a gente tem um ‘Q’ de responsabilidade, mas também um ‘Q’ de gratidão por estar participando de uma iniciativa histórica”, disse o secretário.

 

Antes mesmo de dar início à vacinação em massa, entre os dias 22 e 27/07, os tecedores da Redes da Maré realizaram uma atividade de pré-cadastro para as famílias que ainda não tinham ficha nas unidades de saúde. No total, foram cadastrados 3.735 moradores, incluindo 465 jovens entre 15 e 19 anos (12,4%), 1.143 jovens entre 20 e 24 (30,6%) e 1.090 entre 25 e 29 (29,2%).

 

moradora

Pré-cadastro de moradores
Foto: Gabriela Lino

Desses, 45% se declararam pardos e 19% pretos. Desde a semana anterior, a maioria da equipe realizou reuniões para traçar estratégias de mobilização e de comunicação para o pré-cadastro e os dias de vacinação, uma das forças de trabalho e metodologia da Redes da Maré.

 

Andreza Dionisio, 22, articuladora e mobilizadora da Casa das Mulheres da Maré, participou de três frentes: foi responsável pela Associação de Moradores da Vila do João, por uma equipe de mobilização de rua - com entrega de flyers, comunicação por megafones etc, e por um ponto de vacinação, na Escola Municipal Ginásio Rio Olimpíadas 2016. “Eu achei bem importante ir na casa das pessoas, bater na porta delas, conversar, mostrar que a gente está ali e que é importante ela estar lá. Foi um momento bom para poder explicar a relevância de ter o cadastro atualizado, porque é uma vacinação em massa, uma vacinação territorial para produzir resultados de um estudo”, explica.

 

Diego Bezerra

Trabalhar na Maré pra mim é o que move a minha vida. Como indivíduo, como sujeito, eu entendo que uma das minhas missões é fortalecer as pessoas do meu território para ocuparem esses espaços, a gente poder falar pela gente e pararem de falar por nós”, conta Andreza.

 

Diego Bezerra, 32, nascido em João Pessoa (PB) e morador da Vila dos Pinheiros há 24 anos, foi um dos moradores que aproveitaram a oportunidade e fizeram o cadastro durante a chamada nas ruas, na Vila do João. Ele trouxe sua esposa, Graziane Felipe, 29, para se vacinar no primeiro dia, e no caminho para a CF Adib Jatene, chamava as pessoas para se vacinarem. “A campanha é boa, pelo menos estão pensando em nós, que somos menos favorecidos. Nossa família não teve nenhuma perda, graças a Deus”. Sua esposa relata que a mãe e a tia tiveram Covid-19, mas conseguiram se recuperar rápido e já foram vacinadas. A família também se interessou em participar do estudo e está sendo acompanhada.

 

 


Rede de assistência do território da Maré

 

 

Esse primeiro momento de mobilização também foi significativo para os moradores acessarem às unidades de saúde do território e outros tipos de atendimentos, onde tecedores conversaram sobre os serviços de saúde ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a importância das Clínicas da Família, dos agentes comunitários na promoção de saúde e na prevenção de doenças. “Essa campanha também vem fortalecendo os serviços de atenção básica e saúde no território, porque conseguimos identificar um número significativo de pessoas que ainda não tinham cadastro nas CF”, nota a assistente social da Redes da Maré, Laís Araújo, 34, que esteve envolvida nos processos de acolhimento e monitoramento dos casos de Covid-19 identificados ao longo da campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, desde março de 2020.

Diego Bezerra

Perguntado sobre a percepção da importância da vacina em suas famílias, amigos e vizinhos, Diego diz que “há boatos que rolam, mas a maioria acredita. Agora as pessoas estão mais conscientes”. Foto: Julia Bruce

Ela percorreu as ruas, sobretudo do Morro do Timbau, divulgando e conversando com a população sobre a importância da vacina.

 

O tecedor Jorge Magnun, 28, assistente social no projeto de isolamento seguro do Conexão Saúde e morador do Morro do Timbau, divide da mesma opinião: “entender que a CF é um serviço público e, acima de tudo, um direito do morador, vai muito na linha do que a própria Redes entende, que é tecer as relações a partir da luta pelos direitos dessa população”. Jorge foi um dos líderes da mobilização no local, nas associações de moradores do Morro do Timbau e fez parte da equipe de pesquisa nas unidades de saúde realizando as entrevistas e o teste sorológico para as famílias que começaram a ser acompanhadas.

 

 

 

Comunicação de rua

 

 O #VacinaMaré contou diversas ações de mobilização e comunicação, como: colagem de lambe em muros, cartazes nos comércios, circulação de carros de som com informações, comunicação online pelas redes sociais, voluntários espalhados em pontos de informação e a produção de podcasts.

 

Paulo Pereira

Paulo Pereira, 36, agente comunitário de saúde da CF Adib Jatene há 6 anos: “Falta muito para mostrar à população a importância da vacinação. A AstraZeneca é uma das vacinas que têm mais eficácia na prevenção e no combate à variante Delta, muitas pessoas não sabem disso. Temos muito esse trabalho de estar informando, de estar fazendo essa promoção da saúde”, analisa. Foto: Julia Bruce

Influenciadores digitais e artistas, como Raphael Vicente, Clayton Guimarães, Paloma Callado e Taís Araujo, divulgaram em suas redes sociais conteúdos sobre a vacinação, chamando os moradores para estarem juntos dessa iniciativa demonstrando a importância de se vacinar. A moradora Rayane de Lima, 29, que veio com sua família do Rio Grande do Norte para a Maré aos 5 anos de idade, contou que soube da ação pelas redes sociais da organização, mas que conhece pessoas que tiveram informação pela televisão, pela divulgação nas próprias unidades de saúde e entrega dos flyers pelos tecedores da Redes da Maré.

 

A presidente da FioCruz, Nísia Trindade, ficou surpresa com a forte presença de jovens mobilizadores. “Fiquei muito feliz ao chegar aqui e ver tanta gente jovem mobilizada”. E destacou: “produzimos a vacina, mas se não houver uma estratégia de política pública, a vacina se perde. Então, a força está no SUS, nessa integração e nessa visão. Tenho uma proposta de que nós deveríamos criar um grupo de ações permanentes nesse território”, destaca.

 

Potência e reconhecimento do território mareense

 

Persistência, engajamento e movimento foram os grandes significados dessa ação de vacinação em massa, que só mostrou o quanto o conjunto de 16 favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro é potente. Eliana Sousa, diretora e fundadora da Redes da Maré, é atuante em movimentos comunitários desde a década de 1980 e mostra que a força coletiva é fundamental para tudo acontecer.

Lidiane

A comunicação na porta de cada morador facilitou o processo de cadastro nas unidades de saúde locais. A tecedora Lidiane Malanquini conta que a equipe percorreu todas as ruas e becos da Maré falando sobre a importância da vacinação: “isso foi um dos auges, um dos acertos que tivemos nesse processo de mobilização”. Foto: Gabriela Lino


Eu entendo que tudo o que a gente faz hoje é resultado desse processo que foi plantado lá atrás, inclusive na década de 1970, quando tínhamos outros grupos comunitários que lutaram para termos água, esgoto, saneamento básico. Esse processo contínuo é o que mais garante tudo isso que vivemos aqui. Então, penso que a própria Redes é fruto desse processo e eu acho que ela consegue mobilizar projetos tão significativos para o conjunto de favelas, justamente porque é algo que tem a ver com toda uma articulação que vem de muito tempo”. 

 

Quem tem o mesmo sentimento são dois membros das associações de moradores: a Jaqueline Lopes, 36, secretária da Associação de Moradores de Ramos e Roquette Pinto, e Deraldo Batista, presidente da Associação de Moradores do Parque União, associações que somaram ao realizar o pré-cadastro e a vacinação em suas unidades. “Nós abraçamos a ideia. Depois de tantas perdas, essa ação me trouxe esperança de que, em breve, poderemos voltar a viver normal e crer que dias melhores estão por vir”, expressa Jaqueline. Deraldo, que é parceiro da Redes da Maré desde o início, diz que é a vez de todas as 16 comunidades da Maré. “Eu falei com a minha organização para estar de portas abertas, tanto para fazer a inscrição quanto para vacinar, e na hora que eles quiserem. Eu acho muito bonito isso, e é um incentivo que serve para todo mundo, não só aos novos, como também para os idosos”, afirma.

 

União da força produtiva científica do Rio de Janeiro 

 

Fernando Bozza, pesquisador responsável pelo estudo da FioCruz, fala emocionado ao ver juntas, nesta ação, duas instituições de extrema relevância para a produção científica. “Sempre quis, de uma certa maneira, juntar a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a FioCruz. 30% da ciência biomédica é produzida nesse eixo e, hoje, ficou claro para mim que essas instituições não estão separadas, mas unidas pela Maré”, afirmou ele, na abertura do terceiro dia de vacinação, quando as equipes de profissionais da UFRJ, da FioCruz e da Bio Manguinhos, estiveram presentes num encontro em uma das clínicas e contaram sobre a atuação da rede colaborativa entre ciência e educação.

 

A reitora da UFRJ, Denise Pires, relata que a atividade de pesquisa na área de saúde da universidade tem origem na FioCruz, e que sem ela, a UFRJ não teria esse setor desenvolvido, como é hoje, trazendo assistência devida aos moradores da Maré. “A partir desse século, a gente vê cada vez mais a importância disso que está na lei de Diretrizes e Bases: indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. É uma ação conjunta e nós vamos continuar juntas”, comenta.

 

Luna Arouca e Valcler Rangel

Luna Arouca e Valcler Rangel em uma das ações de mobilização para o cadastramento. Foto: Gabriela Lino

Vale ressaltar que alguns dos atores que participaram de todo o processo de mobilização durante a campanha não moram, não nasceram e nem foram criados no território, mas a valorização por toda a história mareense que fez parte de suas vidas em um certo momento foi definitiva para a união de esforços. Luna Arouca, nascida e criada em Santa Teresa, se aproximou da Maré em 2018, ao coordenar um projeto da Redes da Maré para redução de danos para pessoas em situação de rua e uso de drogas, o “Espaço Normal”. Em 2020, ela assumiu a liderança do Conexão Saúde, e naturalmente encampou as articulações do território e das demais instituições na realização desta campanha de vacinação em massa.

 

Ela acredita que a Vacina Maré será um mar de oportunidades a partir do diagnóstico que será feito, e permitirá que todos olhem para a saúde da população e construa infinitas possibilidades junto à FioCruz e à Prefeitura do Rio. “Eu diria que tem algo de revolucionário no que está acontecendo, em vários sentidos, numa favela carioca; ter essa vacinação em massa adiantada por conta do estudo, da união de esforços, esse trabalho conjunto”, reflete a tecedora, que é filha de Sérgio Arouca, um dos principais teóricos de saúde pública do Brasil, e líder na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). 

 

Raphael Vicente

Thiago Wendel aplicando a segunda dose da vacina contra a Covid-19  na Luna Arouca, durante a campanha de vacinação na CF Adib Jatene. Foto: Melissa França

Outro ator importante nesse processo é Thiago Wendel, 37, mestre em Saúde Pública e atual Coordenador Geral de Atenção Primária da CAP 3.1. Morador do Complexo do Alemão, ele reflete sobre a ação de vacinação e o que ela representa para este território. Ele destaca três pontos fundamentais para a ação. “Primeiro, conseguimos reduzir significativamente o número de óbitos no território; estudos comprovam que a pessoa imunizada já tem 90% de chance de não desenvolver os sintomas graves da doença. Em segundo lugar, o engajamento da sociedade civil, FioCruz, Redes da Maré, e SMS foi fundamental para a realização; e, em terceiro, sou jovem, enfermeiro, oriundo de uma comunidade, e estar coordenando uma ação que vai salvar vidas dentro da comunidade é uma representatividade do povo para o povo e que me motiva todos os dias, me dá ânimo para seguir”, comenta emocionado.

 

A relevância da cidadania no atual cenário faz parte de todo esse caminho de reconhecimento e potência da Maré, e o que este território representa nas lutas de favelas e periferias. No primeiro dia de vacinação, Quitta Pinheiro, 25, moradora da Vila dos Pinheiros e mulher trans, demonstra que essa ação “é de uma importância gigantesca para a nossa cidadania, para o nosso acesso e a promoção de saúde. Pra gente que é da população LGBT e moradora da Maré, é muito gratificante ter toda essa vacinação em massa para que tenhamos essa possibilidade de estar se vacinando, sabendo de todas as problemáticas que tivemos em relação à vacinação”, sente. Infelizmente, Quitta perdeu sua bisavó, que era moradora do Morro do Alemão, para a Covid-19, no início da pandemia. “Estar aqui e estar viva, presenciando esse momento, é muito emocionante!”, diz.

 

Quitta Pinheiro

Quitta Pinheiro (25), no primeiro dia da #VacinaMaré. Foto: Julia Bruce

 

 

"Isso que fizemos na Maré é sem dúvida histórico. Quando a gente pensa que a Maré é uma cidade dentro da cidade do Rio de Janeiro, e que aqui existe também uma inteligência colocada e importante de a gente valorizar e reconhecer, damos forma a possibilidades de políticas públicas que sejam concretas, que venham do chão, da base desses territórios. Muitas vezes, a política pública vem de cima para baixo, e os moradores não se sentem representados”. Renata Souza, deputada estadual (PSOL/RJ)

 

“Me deixa honrada também e é muito importante que a gente venha se vacinar. A gente só consegue erradicar a doença com a vacina, então eu me sinto muito feliz por ter sido chamada para ser uma das primeiras a se vacinar, ainda mais numa comunidade que acaba sempre sendo uma das últimas. Quando vemos uma ação em que nós somos os primeiros é algo que me deixa muito feliz”. Brenda Ferreira, 20, estudante de Direito na UERJ, uma das primeiras vacinadas na ação, integrante da Frente de Mobilização da Maré

 

Graças a Deus, não chegamos a ter Covid. Ele estuda em colégio federal, trabalha, e aconselhei ele para tomar a vacina. Estou feliz por isso, de eu chegar na minha idade, 33, e a idade dele de 18 anos, e de estar todo mundo imunizado”. Elisa da Silva, mãe de Felipe Matheus

 

“No dia 13 de março de 2020, logo depois da Organização Mundial de Saúde (OMS) ter declarado a situação de pandemia, recebi um chamado da Eliana para saber como poderíamos trabalhar juntas, como a FioCruz poderia ajudar a Maré, e foram construídas muitas parcerias para esse trabalho aqui da vacinação. Também naquele momento, a gente já vinha tentando que as vozes da Redes da Maré e de outras associações fossem ouvidas na questão da segurança, dos direitos, e fizemos encontros com o pessoal da academia, com parlamentares”. Nísia Trindade, presidente da FioCruz

 

“Trabalhei na Maré no final da década de 1980 e estou reencontrando as pessoas. Eu lembro que, numa campanha de vacinação que participei, fizemos um inquérito nutricional e me lembrou muito isso aqui e é emocionante, porque também mobilizamos. Lembro de pegar balanças dentro da FioCruz e em vários lugares para botar nos postos de vacinação… Fizemos isso no meio de uma campanha de vacinação, na época tinha muita desnutrição! Lá em 1988 eu via as pessoas se mobilizando com muito menos recursos e muito mais dificuldades, e agora também se mobilizando. Então, as pessoas estão aí, tem uma potência!”. Valcler Rangel, assessor de Relações Interinstitucionais da Fiocruz

 

Quando a gente se dispõe a buscar soluções, formas de enfrentamento, as coisas acontecem. Temos que nos movimentar diante dos problemas”. Eliana Sousa, fundadora e diretora da Redes da Maré

 

Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2021

 

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