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DE OLHO NA MARÉ: OITO ANOS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA NAS FAVELAS DA MARÉ

Por: Aristênio Gomes Pesquisador Redes da Maré, Isabel Barbosa Pesquisadora Redes da Maré, Julian Brigstocke Professor Cardiff University, Luiz Carlos B. J. Junior Pesquisador Redes da Maré, Maykon Sardinha Pesquisador Redes da Maré, Thays dos Santos Pinto Pesquisadora Redes da Maré

 

A produção de conhecimento sobre uma determinada realidade é uma ferramenta poderosa, capaz de promover melhorias significativas na qualidade de vida das pessoas, possibilitando que a tomada de decisões em políticas públicas seja baseada em evidências. Ao analisar dados relevantes, as pessoas responsáveis pelas decisões políticas podem identificar as áreas que precisam de melhoria e direcionar os recursos de forma mais eficiente.

O projeto De Olho na Maré ¹ nasce como uma estratégia de produção de conhecimento sobre Segurança Pública no Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, com uma população de mais de 140 mil habitantes. O projeto foi idealizado pela Organização da Sociedade Civil Redes da Maré, uma organização de base comunitária com origem nos processos de mobilização comunitária da década de 1980, que atua nas favelas da Maré a partir de uma articulação metodológica que combina produção de conhecimento, mobilização comunitária, experimentação de ações concretas e incidência em políticas públicas. Acreditamos que essa combinação é capaz de, a médio e longo prazo, impactar na melhoria da qualidade de vida de seus moradores.

¹ https://www.redesdamare.org.br/br/info/22/de-olho-na-mare

Desde 2016, o De Olho na Maré sistematiza e publica dados sobre as dinâmicas da Segurança Pública da região. Ao longo dos anos, a equipe elaborou uma metodologia própria, aprimorada a cada boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado anualmente, que conta com a participação de moradoras e moradores, para executar com qualidade o compartilhamento de informações precisas, que resultem em políticas públicas para garantir direitos e serviços aos mais de 140 mil moradores da Maré.

Mas, na prática, como se realiza este trabalho? Pode-se dividir em 9 estratégias de atuação que imbricadas umas às outras formam uma metodologia única e consistente para a compreensão das dinâmicas e resultados das operações policiais nas favelas da Maré:

Em dias que ocorrem operações policiais, a equipe fica de plantão e disponível para atender e agir diante de situações emergenciais de violência nas favelas da Maré. Ao mesmo tempo, é realizada uma pesquisa em redes sociais e mídias, com o objetivo de coletar informações que não chegaram ou não foram fornecidas. Todas as informações coletadas em redes sociais são posteriormente checadas em sua veracidade em fontes oficiais.

Em até 48h após a ocorrência da operação policial, é feita a busca ativa, onde a equipe vai até os locais onde aconteceram as violências ou há necessidade de confirmar alguma informação. As informações coletadas e confirmadas entram para o banco de dados. De modo contínuo, através da articulação territorial, contamos com a colaboração e interação com outras organizações e atores locais na obtenção de informações, assim como na atuação conjunta no enfrentamento às violências.

Paralelamente, é realizado um levantamento de dados oficiais, que trata-se da coleta de dados em instituições públicas que possam colaborar no mapeamento dos impactos coletivos ocorridos nas favelas da Maré. A coleta de evidências é feita por meio de imagens, vídeos ou testemunhos. Visa contribuir no esclarecimento em eventos de violência, assim como embasar ações e denúncias.

Os resultados das primeiras etapas são a gestão do banco de dados e sistematização de informações coletadas ao longo de todo ano que permitem a produção de informações e avaliação precisa dos impactos da violência no território. A produção de relatórios, boletins e análises são ferramentas importantes para que, através de articulações com órgãos de justiça, possam apresentar resultados e trazer transformações reais no território, além da plenitude de acesso ao sistema de justiça para os moradores.

Toda a metodologia resulta em um dos pontos mais importantes: a construção de narrativas e promoção do debate crítico sobre segurança pública, estimulando a reflexão coletiva sobre segurança, direitos humanos e violência. Em razão disso, pretende-se a conscientização e mobilização da sociedade, atingindo fundamentalmente aqueles que mais precisam estar inseridos no debate e na construção de estratégias, os moradores de favela.

Entre 2016 e 2023, foram publicados oito boletins Direito à Segurança Pública na Maré. Cada um deles traz uma reflexão sobre os impactos da violência armada na região das favelas da Maré, amparada em uma contextualização das dinâmicas políticas do Estado e do País.

Essa série histórica nos permite fazer alguns apontamentos importantes, estratégicos para a consolidação do direito à Segurança Pública para os moradores de favelas e espaços populares:

1. Os dados compilados pelo projeto De Olho na Maré proporcionam uma análise detalhada e comparativa ao longo dos anos que, através dos boletins, permitiu uma leitura aprofundada sobre as mudanças na frequência e nos impactos letais da violência armada, especialmente das operações policiais.

2. A observação ao longo do tempo revela um fator chave: o controle exercido pelo Poder Judiciário.

3. As reduções na incidência de operações policiais e seus efeitos letais coincidem com intervenções significativas do Judiciário na condução da política de segurança pública do Rio de Janeiro, destacando-se a Ação Civil Pública da Maré (ACP da Maré) perante o Tribunal de Justiça do Estado e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (ADPF das Favelas) perante o Supremo Tribunal Federal.

Essas iniciativas, junto a pressão exercida pela sociedade civil organizada, foram fundamentais para controlar as operações durante a pandemia e resultaram em reduções significativas de mortes. Entre 2019 e 2020, nas favelas da Maré, as mortes em operações policiais diminuíram 82% após a decisão liminar deferida pelo Superior Tribunal Federal, que limitou a realização de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de COVID-19 para casos de excepcionalidade. Portanto, é evidente que o monitoramento e a atuação do Poder Judiciário desempenham um papel crucial na busca por soluções que visam mitigar os impactos devastadores da violência armada nas favelas da Maré.

²A Ação Civil Pública da Maré, conquistada em 2017, é a primeira ação judicial coletiva sobre Segurança Pública para favelas do Brasil que determinou o cumprimento de uma série de medidas que visam a redução de danos e riscos durante as operações policiais.

³Conquista de 2020 no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 determina que o Estado cumpra uma série de requisitos a fim de reduzir a letalidade policial nas favelas.

⁴‬Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2022, p. 12. - https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_Boletim_direito_SegPubli23.pdf

Segundo o Boletim 2022, mesmo com as restrições impostas pelo STF, durante as operações policiais nas favelas da Maré, 62% ocorreram próximo a escolas e creches e 67% aconteceram próximo às unidades de saúde⁵. Mesmo com a decisão da maior instância do judiciário visando a diminuição da letalidade nas favelas, percebe-se o desrespeito por parte do governo do Rio de Janeiro, assim como por suas instituições policiais. Nesse sentido, se faz necessária uma atuação mais efetiva do Ministério Público no controle externo da atividade policial, garantindo aos cidadãos favelados direitos fundamentais frente ao aparato repressivo do Estado. O que prevê a constituição Federal de 1988 deve ser garantido para todos.

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Nesse sentido, o projeto De Olho na Maré acumula oito anos de monitoramento da violência armada, fornecendo uma visão detalhada e temporal dessa realidade, permitindo a identificação de fatores que intensificam ou atenuam a violência. No entanto, um dos principais desafios é garantir que esses dados sejam considerados pelas pessoas que compõem o sistema de justiça, assim como as instituições políticas que formulam e decidem políticas de segurança pública.

É crucial questionar os resultados apresentados pelas forças de segurança pública do Rio de Janeiro, especialmente diante do aumento consistente da violência armada. Em 2022, como nos evidencia este boletim, houve um aumento significativo no número de mortes em operações policiais em comparação aos últimos três anos, registrando um aumento de 145% em relação ao ano anterior.⁶ O orçamento público destinado a investimentos bélico-militarizados deve ser acompanhado por resultados proporcionais no combate e repressão de condutas ilícitas, e não no aumento da letalidade. É inaceitável que a violência continue a crescer sem uma resposta eficaz. Há décadas a “guerra às drogas” tem se mostrado a política fracassada, que não alcança nenhum dos seus supostos objetivos. Uma verba orçamentária que poderia estar sendo investida em hospitais, escolas e serviços públicos que melhorariam a qualidade de vida dos cidadãos cariocas é utilizada em ações das forças de segurança que, em controvérsia, causam muita insegurança e mortes nas periferias do Rio de Janeiro. Os dados produzidos pela Redes da Maré e outras organizações da sociedade civil confirmam a ineficiência das sucessivas estratégias de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, destacando problemas como a falta de suporte em dados concretos, ausência de perícia e falta de fluxo de informações institucionais, que contribuem para a geração de novas violações de direitos. Essas questões exigem uma abordagem urgente para a construção de uma verdadeira política de segurança, que encare este como um direito fundamental e basilar de todos os outros direitos.

É urgente questionar não apenas a eficácia, mas também a ética dessa lógica belicista das operações policiais. A seletividade de favelas como alvos prioritários de combate ao crime, a falta de transparência e os impactos devastadores sobre a população das favelas da Maré e outros espaços populares suscitam sérias preocupações sobre esta abordagem das autoridades. A justificativa de buscar "segurança e justiça" não pode comprometer os direitos, a dignidade e a saúde mental dos moradores das favelas. É essencial que as soluções sejam justas e equitativas, envolvendo esforços colaborativos de diferentes políticas públicas em vários níveis, visando garantir condições de vida mais seguras e saudáveis para todos.

⁵Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2022, p. 3. - https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_Boletim_direito_SegPubli23.pdf

⁶Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2022, p. 7. - https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_Boletim_direito_SegPubli23.pdf

 

 

Rio de Janeiro, 28 de março de 2024.

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