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Column | Talking about public security in Maré. Slum lives matter! A reflection on public security in the favelas

Vidas faveladas importam! Uma reflexão sobre Segurança Pública nas favelas

Trabalho em favelas há mais de trinta anos e, cada vez mais, me apaixono pela diferente rotina destes espaços. Nasci em Juiz de Fora, Minas Gerais, mas saí muito pequena de lá, e morei em outras cidades com a minha família, até que vim para o Rio, para Tijuca, quando tinha nove anos de idade. Quando me casei, aos 24 anos, morei por uns anos em Petrópolis e voltei para a Tijuca um ano após a minha separação. Vim para Maré no final de 2000 e, desde então, passo a maior parte do meu tempo neste território. Para mim, a Maré é um espaço de muito afeto; o lugar que eu escolhi para trabalhar, ampliar minhas relações profissionais e pessoais e, especialmente, é o meu lugar de luta.

 

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Muitas pessoas que eu conheço me perguntam se eu não tenho medo de trabalhar na Maré porque leem ou escutam, com muita frequência, situações de violência que acontecem aqui. Infelizmente, isso é verdade, mas apenas parte da verdade. Aqui na Maré acontecem coisas maravilhosas também. Quem não está aqui no dia a dia, só fica sabendo da ausência, da carência, da violência e não tem ideia de como este é um espaço rico em muitas coisas, como: diferentes culturas, variedades gastronômicas, maravilhosas maneiras de se divertir, muita solidariedade e pessoas com muito potencial. Onde moro, pouco conheço meus vizinhos. Não sei das dificuldades que eles passam e muito menos se precisam de alguma ajuda. Nas favelas, em geral, muitos se conhecem e, quando acontece alguma situação complicada, vários correm para ajudar. Você sabe que possivelmente terá o apoio de alguém. Enfim, é um lugar muito gostoso de se viver, “apesar de”, como nos ensina o livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector.

Em relação à questão da violência, não deixo o medo me paralisar. Penso a todo instante que tenho um compromisso ético com essa população e não posso deixar esse sentimento me invadir e me impedir de atuar, mesmo nos momentos mais tensos. Vejo que, também, muitos moradores e moradoras entram em pânico quando há confrontos armados, sejam esses entre grupos civis armados ou em operações policiais. Ninguém se acostuma com a violência! E não é para se acostumar! NUNCA! Todos os dias, a população das favelas e periferias sofre, mas resiste. Historicamente, principalmente a partir do início da década de 1980, há um grande movimento dos moradores da Maré para pensar formas de mudança no território, impactando no aumento e melhoria dos serviços existentes na época – escolas, creches, postos de saúde, rede elétrica, água potável, redes de esgoto, entre outros. A questão da segurança pública também sempre esteve em pauta nas discussões das organizações comunitária – sejam elas instituições não governamentais, religiosas ou grupos organizados. A população sempre lutou com toda sua força para que a vida não tenha mais violência ou, pelo menos, para que ela diminua.  Porém, estas situações ainda são muito comuns e atravessam o cotidiano de quem vive e trabalha aqui. Lembro-me de um dia em que tive que presenciar a morte de mais um menino que estava na rua quando se iniciou uma operação policial:

O dia amanhece e a claridade vai tomando conta dos pequenos espaços de cada casa de uma das estreitas ruas da favela. A mulher, como em muitas dessas casas, é quem acorda primeiro e vai providenciando os primeiros movimentos daquela família. Ali moram a mulher, seus três filhos, uma amiga e um sobrinho, filho de seu irmão. É hora das duas crianças mais novas se levantarem para colocar o uniforme e ir para a escola. Não podem perder a hora, senão ficam sem o café da manhã oferecido pela escola e só vão poder comer na hora do almoço, também oferecido pela escola. O mais velho parou de estudar no ano anterior, porque repetiu duas vezes o quarto e o quinto ano do Ensino Fundamental, e se desinteressou completamente em continuar seus estudos. O sobrinho trabalha no comércio como vendedor de uma loja que fica bem próximo da sua casa. Mas como só trabalha à tarde, pode dormir um pouco mais e, como todos dormem num mesmo cômodo, as crianças procuram não fazer muito barulho para não acordar os outros. A mãe trabalha em uma instituição social dentro da Maré e também precisa se apressar para não se atrasar. A amiga se levanta para ajudar as crianças a se arrumarem e sai à procura de um trabalho. Ficam em casa o filho mais velho e o sobrinho. As ruas e vielas vão ficando mais movimentadas e as vozes das pessoas vão sendo cada vez mais audíveis.  O menino de oito anos leva a irmã de seis para a escola e segue o caminho de sua escola. A dois quarteirões da escola escuta barulho de fogos, aparentemente vindos de um lugar bem próximo. O menino não sabe para onde correr e lembra-se da casa de um amigo naquele quarteirão. Corre, abre o portão e... tiros... muitos tiros. Quando a mãe do amigo abre a porta de casa, vê o amigo do filho caído no chão. Seu corpo, ainda quente, já estava sem vida. A mulher grita enlouquecidamente e chora sem parar. Os vizinhos não sabem o que fazer. Os tiros param. Mas não tem nada mais que se possa fazer. A favela inteira chora. Mais uma criança morta por causa de uma guerra insana. Mais uma família estraçalhada. Como dizer para a mãe, para os irmãos, para os amigos que essa criança partiu e não voltará nunca mais? Ele foi brutalmente arrancado de suas vidas!

 

A cada dia, morremos um pouquinho, vamos perdendo a alegria de viver e tentando recuperá-la a todo instante. No(s) dia(s) seguinte(s) de uma tragédia, como relatei anteriormente, vejo moradores e moradoras tentando continuar sua vida, torcendo para que seja um dia mais tranquilo, sem confrontos, sem violência, sem desrespeito,  sem barbáries, sem... Que seja apenas um dia NORMAL!

 

Na instituição em que eu trabalho, temos projetos que certamente contribuem para que a população das favelas possa conhecer melhor seus direitos e exigir do Estado o mesmo atendimento e cuidado que em qualquer outra parte da cidade, seja em relação à saúde, à educação, à moradia e também à segurança pública. Nossas crianças deixam de ter aula pelo menos 15% dos dias letivos todos os anos, por conta da violência. Isto sem considerar que o ensino nas escolas da Maré ainda não tem a mesma qualidade que nas escolas localizadas em outros bairros da cidade. Acontece com muita frequência o desestímulo de crianças em continuar nas escolas, especialmente quando elas se deparam com dificuldades de aprendizagem que, infelizmente, não são resolvidas e só aumentam com o passar dos anos. Inúmeros são os casos de crianças que repetem de ano uma, duas, três vezes, até que desistem de estudar. Como podemos garantir que essas crianças terão, no futuro, as mesmas oportunidades e condições que qualquer outra? Tentamos mostrar à sociedade, especialmente às pessoas que não circulam nesses espaços, que é responsabilidade de todos não permitir que essa desigualdade absurda permaneça.

Há possibilidades de mudança? Essa é a pergunta que me faço todos os dias. Sim, acredito que algum dia, em algum momento, o Estado vai entender que essas operações “enxuga gelo” não irão melhorar e muito menos resolver a situação em que nos encontramos. As fábricas de armas estão na Maré? Plantações e laboratórios de drogas estão na Maré? Na minha opinião, o combate à criminalidade não pode ocorrer desta maneira. Foi aqui na Maré que aprendi muito sobre segurança pública, andando por esses becos e vielas. Foi aqui que aprendi que essas operações “enxuga gelo” não garantem segurança, pelo contrário, aumentam os riscos e violam direitos de quem vive aqui. Pensar em uma política de segurança que aja com inteligência, é fundamental. Ações de fiscalização nas fronteiras terrestres, marítimas ou aéreas seriam, por exemplo, muito mais eficientes e eficazes no combate à criminalidade. Acredito que se nossos governantes quiserem mudar esta situação, eles têm condição. Sei que não deve ser simples, que deve ser bastante complexo, pois há várias questões envolvidas, especialmente questões políticas e de interesses pessoais.  

Mas sim, ainda assim, acredito que seja possível!

 

*Patrícia Vianna é professora, deu aula e coordenou o segundo segmento do Ensino Fundamental por mais de 30 anos no Centro Educacional Anísio Teixeira (Ceat). Trabalha na Maré desde 2001. Atualmente, coordena projetos nas áreas de Educação e Segurança Pública na Redes de Desenvolvimento da Maré.   

 

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Lutar é um verbo eternamente conjugado por nós, moradores de favelas

Shirley Rosendo* | 27 de maio de 2019

 

A sua casa é um ambiente seguro para você, certo? A escola onde seus filhos ou parentes estudam a mesma coisa. O bairro que você mora, de alguma forma, também é. Ou seja, apesar das nossas dificuldades, tentamos e lutamos para que o espaço onde moramos, estudamos, trabalhamos seja um ambiente seguro. Mas você já se imaginou em um local onde uma operação policial pode ocorrer a qualquer momento e colocar isso tudo em questão? Já se imaginou morar em um local onde algum grupo civil armado ou paramilitar possa cobrar pela sua segurança? Já imaginou o caveirão voador sobrevoando a sua casa, seu trabalho? Pois bem, essa é a realidade da maioria das favelas cariocas.

Quando uma operação policial ocorre, o caveirão terrestre desfila pelas ruas das favelas, como se nelas não tivesse ninguém. Do mesmo modo, quando caveirões voadores são utilizados é como se a favela virasse para esses um terreno vazio. Ou seja, a vida é suspensa! As casas e as escolas deixam de ser aqueles espaços seguros, pois o caveirão voador estremesse as nossas casas, os blindados deixam nosso coração mais que apertado. E, em questão de segundo, raciocinamos onde é o lugar mais seguro para não virarmos estatísticas. Corremos para as escolas para buscar nossos parentes. E quem só trabalha na favela, espera o momento mais seguro para ir embora. Porém, nós não podemos! E, infelizmente, quem deveria garantir nossos direitos é o maior violador. Então, até para se esconder de um tiro em nossa casa temos que pensar em como. Temos que pensar como não viramos estatística. E, infelizmente, a cada dia, em algumas das mais de mil favelas que tem no Estado do Rio de Janeiro, uma vida se vai, deixando um vazio, acompanhado de muita dor, no peito das mães e parentes de vítimas do Estado.

E embora sejam corriqueiras as falas “que as favelas estão passando por um momento de passividade, que favelados e faveladas são despolitizados”, o que o Ato PAREM DE NOS MATAR vem mostrar, é que não há movimento de inércia, em especial, quando é o direito à vida que é colocado em xeque. Ele foi organizado por mais de 85 instituições e reuniu aproximadamente 5 mil pessoas na orla de Ipanema. E, para variar, era o mesmo dia do ato convocado pelo atual presidente, que no geral não faz a menor questão de zelar pelos nossos direitos – aliás pelo contrário. Então, o nosso ato contém muitas respostas:

1) Parem de nos Matar, não toleraremos mais essa política de genocídio e daremos visibilidade a ela até que ela seja suspensa;

2) Não estamos na inércia, pois embora nossas favelas sejam preconizadas pelo Estado, estamos lutando diariamente para que o quadro se inverta;

3) Não recuaremos! Não sairemos das ruas, pois a rua e a cidade é nossa também, e buscaremos todas as estratégias possíveis de visibilizar as violações de direitos aos quais passamos, assim como mostraremos a nossa capacidade de se juntar e reinventar para conquistar nossos direitos.

E, por fim, o problema da violência não é de exclusividade da favela, não é um problema só dela. Logo, os cidadãos da cidade precisam se implicar, em resolver esse problema junto.

Patrícia Vianna, Moradora da Maré, Mestre em Educação e Política pública. Pesquisadora de juventudes, favela e educação. Coordenadora de Mobilização do Eixo de Segurança Pública e Acesso a Justiça da Redes da Maré.

 

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