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Pesquisa inédita sobre a primeira infância no Conjunto de Favelas da Maré é lançada

Julia Bruce

No dia 27 de setembro, a Redes da Maré lançou o diagnóstico Primeira Infância nas Favelas da Maré: Acesso a Direitos e Práticas de Cuidado, no Galpão Rede de Inovação Tecnológica da Maré (Rtima). O evento apresentou os resultados da pesquisa apoiada pela Porticus, através da qual a equipe do projeto Primeira Infância produziu conhecimento sobre as condições de vida e perfil das crianças de 0 a 6 anos residentes nas 16 favelas da Maré. Desde fevereiro de 2021, o Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado vem realizando esta pesquisa como forma de entender a realidade das famílias e como acessam serviços essenciais para o seu desenvolvimento.

De acordo com o Censo Maré (2013), há mais de 14 mil crianças de 0 a 6 anos na região. A favela com a maior população na primeira infância é o Parque União, com 15,2% do total, seguida por Vila dos Pinheiros (11,7%), Nova Holanda (11,1%) e Vila do João (10,1%). “Na pandemia, foi feito um banco de dados na campanha Maré diz NÃO ao coronavírus a partir da frente de segurança alimentar. Fizemos uma seleção de pessoas que têm crianças na primeira infância. A partir daí, começamos a pesquisa  em todas as 16 favelas. A equipe, inicialmente, era formada por quatro pessoas que realizaram mais de 100 questionários. Até hoje, acompanhamos certas famílias que continuam nos procurando”, explica uma das coordenadoras do projeto e integrantes da pesquisa, Vanessa de Paula.

A equipe de campo visitou as casas das pessoas aplicando 2.144 questionários. Esta jornada abriu janelas para as vidas de 3.837 crianças, das quais 2.796 com idade de 0 a 6 anos, compreendendo suas realidades em um momento crítico da história. Ao longo dos 12 meses de acompanhamento das famílias, entre julho de 2021 e junho de 2022, foram realizados 40 encontros coletivos e 203 atendimentos de casos, entre visitas domiciliares, contatos por telefone ou presença da família nos locais de atendimento da Redes da Maré. “Nas pesquisas, entendemos que, por exemplo, as mulheres faveladas têm as mesmas quantidades de filhos que as mulheres moradoras de outros locais da cidade. Elas têm, em torno, de 1 a 3 filhos no máximo - 74,5%, 21,4% e 3,5%, respectivamente -, mas também têm os sobrinhos, netos. 50 famílias não são 50 pessoas”, reforça Vanessa.

 

Foto: Douglas Lopes

 

 

Junto a esse acompanhamento direto com as famílias, também foram realizadas entrevistas junto à rede de proteção social, como equipamentos de saúde, de educação e de assistência social. Ao todo foram 35 escolas participantes, incluindo equipamentos de educação infantil (14 unidades) e escolas com oferta do 1º ano do Ensino Fundamental (21 unidades). Além disso, as entrevistas também foram aplicadas em 7 equipamentos de saúde, sendo 6 deles unidades básicas de Saúde da Família e 1 Centro de Atenção Psicossocial Infantil, 1 órgão da Assistência Social, o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) e 1 Conselho Tutelar.

 

Sobre o perfil e contexto dos respondentes da pesquisa domiciliar

 

  • 94% são mulheres, sendo 83% delas mães e 17%, avós, com maioria entre 20 e 29 anos;

  • 51,3% se declara como parda;

  • 31,4% têm o Ensino Fundamental incompleto;

  • 37% dos domicílios com 5 a 15 pessoas;

  • 26% com duas a seis crianças de 0 a 6 anos no domicílio;

  • 32,8% têm renda familiar mensal de até um salário-mínimo e 29,7% trabalham;

  • Em relação à responsabilidade pelo sustento, 39,5% tem o pai como o principal responsável e 38,0% mãe como principal responsável.

 

Pensar o desafio de acesso a direitos é fundamental para compreender como práticas de cuidados à primeira infância são desenvolvidas, no contexto das favelas, no encontro entre crianças e adultos. Com as escolas fechadas, a falta de alternativas para cuidar das crianças deixou principalmente mulheres (mães e avós) encarregadas dos cuidados com elas. Muitas respondentes eram as principais responsáveis pelo sustento da família, muitas vezes com renda mensal de até um salário-mínimo e por meio de benefícios sociais. O nível de dificuldade no acesso às políticas públicas na Maré, em relação à saúde, assistência social e educação, costuma ser “o tempo todo” ou “frequentemente”. 

Em cada uma dessas áreas, dados revelam a ausência de acesso a esses direitos básicos. 57,4% das famílias não recebem nenhum benefício; 64,6% enfrenta algum tipo de dificuldade no acesso ao direito à saúde e a equipamentos públicos na Maré; e 62,9% das crianças de 0 a 3 anos estão fora da creche, por exemplo. Construir políticas públicas que garantam o acesso a direitos para a população, tanto emergenciais quanto continuadas, consiste em um desafio que deve ser superado com pesquisas consistentes e parcerias entre distintos atores sociais.

A diretora de projetos da Rede de Conhecimento Social comenta que a Recos é uma organização sem fins lucrativos e a grande bandeira é atuar com a produção de conhecimento de forma participativa para gerar incidência política. “A nossa grande construção conjuntamente com a Redes da Maré foi: Como a gente cria indicadores para falar se o trabalho está sendo realizado de forma efetiva, se está contribuindo, gerando impacto, com a participação da população e de uma forma que faça sentido? Estamos falando também de várias gerações na mesma família. E temos visto que mulheres, especialmente as negras, estão cada vez mais reduzindo a quantidade de filhos, porque existem condições cada vez mais complexas de criá-los, como a violência, a perspectiva de futuro para eles e ela, ou seja, como garantimos que essa mulher estude, trabalhe, tenha uma qualidade de vida e tenha filhos? Nosso desafio também é escutar as próprias crianças”, sinaliza Harika.

Nesse período da pesquisa, foi observado pelas pesquisadoras sobre como as crianças sabem, reconhecem seus valores e conhecem áreas muito usadas por outras crianças nas favelas, facilitando certos processos durante as entrevistas. “Ao longo desta pesquisa, estivemos acompanhadas de crianças e em alguns lugares foi fundamental a presença das crianças para agilizar os questionários. Isso também evidencia um conhecimento da infância da Maré que precisa ser divulgada para que ela não seja percebida apenas como falta. São crianças que sabem, que sabem das suas vidas, no sentido das políticas que precisam ser trazidas para o território”, conta a pesquisadora da infância e juventude, Adelaide Rezende.

Marés dentro de uma Maré

Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), é necessário haver um conselho tutelar para cada 100 mil habitantes. Por outro lado, o Conjunto de Favelas da Maré (com mais 140 mil moradores), Bonsucesso (mais de 18 mil), Manguinhos (cerca de 40 mil) e Cidade Universitária (cerca de 2 mil habitantes), fazem parte de apenas um conselho: o Conselho Tutelar 11 de Bonsucesso. A pesquisa informa que os conselheiros não conseguem dar conta e produzir informação. Eles não têm estrutura e não conseguem alimentar o sistema que revela as formas de exposição às violações que as crianças de 0 a 6 anos vivenciam.

“Podemos afirmar que esta pesquisa é inédita em termos de metodologia e do alcance do número de famílias e crianças. O olhar para a Maré é olhar para os 16 territórios nas suas particularidades, ao mesmo tempo, sem perder a perspectiva de uma região que concentra mais 140 mil pessoas. Exige do olhar do Poder Público uma atenção: Por que no Parque Maré as mulheres sofrem muito mais do que numa região como a Praia de Ramos? Por que na Baixa do Sapateiro a experiência da Primeira Infância é diferente no Morro do Timbau? A pesquisa lança luz sobre as desigualdades sociais que existem dentro das próprias Marés”, reflete a professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e Coordenadora do Observatório dos Conselhos Tutelares, Miriam Krenzinger.

 

 

Da esquerda para a direita: Gisele Martins, uma das diretoras da Redes da Maré, Miriam Krenzinger, Coordenadora do Observatório dos Conselhos Tutelares, Tábata Lugão e Vanessa de Paula, integrantes da equipe da pesquisa, e a Harika Maia, diretora de projetos da Rede de Conhecimento Social. Foto: Douglas Lopes

 

 

“Ao todo, foram 2 anos criando vínculos com famílias, crianças, com a rede de proteção social, com o Caminhos da Maré, equipe com diferentes projetos da Redes da Maré. O tema Primeira Infância não era comum para nós e percebemos a dificuldade de penetrar nos diálogos. Se referir apenas à criança não fazia mais sentido, reconhecemos a importância que é o recorte da primeira infância e desejávamos que todos conseguissem compreender. Fomos impactadas pelo PIM, refletimos sobre nossas infâncias, questionamos nossa maneira de ver as infâncias e, principalmente, as práticas de cuidado. Mesmo sabendo do trabalho que ainda temos pela frente, na luta pela melhoria da qualidade de vida das crianças na primeira infância da Maré, estou muito feliz e espero que todos sejam rede de apoio para o que tiver a seguir.” 

Tábata Lugão, antiga coordenadora do PIM e integrante da pesquisa

 

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