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Campanha 'Vamos pra escola' de pré-matrícula escolar realizada pela Redes da Maré amplia ação em 2023

Adriana Pavlova

Mutirão espalhado em dez polos nas favelas faz 320 atendimentos e 134 pré-inscrições

Durante seis dias de janeiro, as 16 favelas da Maré viveram uma mobilização de proporções nunca vistas para a matrícula de novos alunos nas escolas municipais. A campanha Vamos pra escola, organizada pelo segundo ano consecutivo pela Redes da Maré, envolveu uma equipe de cerca de cem pessoas, entre tecedores da instituição e voluntários, com o objetivo de facilitar a pré-matrícula de crianças, adolescentes, jovens e adultos que estavam fora da escola. Em parceria com associações de moradores, foram montados dez polos de atendimento, incluindo as duas sedes da Redes (Nova Holanda e Vila dos Pinheiros) e a Lona Cultural Herbert Vianna. A mobilização se estendeu pelas ruas das favelas, onde os moradores eram convocados com alto-falantes e panfletos a fazerem matrícula. Nos polos, os tecedores estavam munidos de computadores para o auxílio no processo de pré-matrícula, que só podia ser feito de forma virtual (no site ou aplicativo), enquanto também tiravam dúvidas, algumas delas relativas ao Ensino Médio, cujas matrículas seguiram o calendário da Secretaria Estadual de Educação. Ao todo, foram feitos 318 atendimentos, com 137 pré-inscrições realizadas depois de muito empenho. Em 2022, foram 175 atendimentos e 102 pré-matrículas realizadas.

 

Vamos para escola 2023 Foto: Patrick Marinho

 

Na prática, houve dificuldade para se conseguir vagas em escolas da Maré para determinados segmentos de ensino. Repetidamente, o sistema da Prefeitura indicava somente opções em bairros mais distantes. Em alguns casos, de tanto insistir, algumas poucas vagas surgiram. Muitos responsáveis foram mais de uma vez aos polos de atendimento na esperança de conseguirem vagas em escolas na região onde moram, evitando o deslocamento de crianças que nem sempre podem andar sozinhas. Mas muitos não conseguiram: foram 100 casos de pré-inscrição não realizada por falta de vaga em escola próxima à residência. Neste cenário, apenas 17 responsáveis acabaram aceitando matrícula em locais mais distantes.

Todos os casos foram registrados e continuam sendo acompanhados pela equipe de articuladores que fazem busca ativa do projeto com foco na procura de crianças fora da escola e infrequentes, realizado pela Redes da Maré, com apoio do Fundo Malala no Brasil. Mesmo durante o mutirão, a equipe da Redes da Maré começou o diálogo com representantes da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), órgão da Secretaria Municipal de Educação responsável pelas escolas da rede municipal na Maré; e com a Metropolitana III, responsável pelas escolas da rede estadual educação da Maré. Trata-se de mais uma ação do trabalho institucional de articulação política com escolas e secretarias estadual e municipal de Educação.

“A Redes da Maré está em constante diálogo com a Gerência de Supervisão e Matrículas (GSM) da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE). O primeiro passo para tentar diminuir o número de crianças e adolescentes fora da escola, depois das matrículas, foi uma reunião, no início de março, para avaliar, conjuntamente, todos os casos de crianças na Maré que não conseguiram vagas em escolas da região", confirma Andréia Martins, diretora da Redes da Maré.

Na reunião com representantes da GSM da 4ª CRE, a equipe da Redes da Maré apresentou a demanda dos alunos sem matrícula, identificados durante a campanha. O que foi informado pela GSM é que, em meados de março, devem surgir novas vagas, depois de um primeiro balanço a ser realizado por cada escola dos alunos que não voltaram a estudar no início do ano letivo, em fevereiro. Oficialmente, novas matrículas podem ser feitas até outubro. Ficou acordado que a equipe da Redes da Maré vai consolidar uma lista que unirá os nomes de todos os alunos que estavam sem escola até 2022 junto com aqueles que não conseguiram vagas na pré-matrícula de 2023. Essa lista será disponibilizada para a GSM e também para a Secretaria Municipal de Educação.

Entre as famílias que conseguiram, vagas depois do auxílio da equipe da Redes da Maré na sede da Nova Holanda, está a da cozinheira Francisca Aline Rodrigues, cujos quatro filhos ficaram o ano de 2022 sem estudar, porque não conseguiram matrícula em escolas da Rocinha, favela onde moraram por um período. Antes disso, passaram a pandemia sem conexão com os professores, atrasando ainda mais os estudos. Agora, Erik de 15 anos está na Escola municipal Osmar Paiva, enquanto Júlia, 14 anos, Maria Vitória, 10 anos, e Maria Alice, 9 anos, estão matriculadas no Ciep Elis Regina.

“Foram praticamente três anos sem estudar, então eles se atrasaram muito. Agora, quero ver se o Erik consegue uma vaga em outra escola da Maré, para fazer o processo de aceleração porque ele está no 5º ano, mas deveria estar no 9º ano. Ele é o maior da turma e não está nada feliz com isso”, explica Francisca.

Outra boa surpresa foi a quantidade grande de pessoas mais velhas, há mais tempo distantes dos bancos escolares, que resolveram procurar a pré-matrícula. É o caso de Ângela Maria Lino, 48 anos, que finalmente vai entrar na escola, depois de muitas décadas. Ex-aluna do projeto de alfabetização de mulheres da Redes da Maré, Escreva Seu Futuro, agora Ângela vai estudar no Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA).

 

"Já sei ler mas tenho muita dificuldade para escrever. Quero continuar aprendendo", diz, sem esconder a alegria. "Agora eu já posso ler a Bíblia." Ângela Maria Lino. Foto: Patrick Marinho

 

Já o menino Fagnner Pyetro Francisco Ferreira, de 10 anos, morador da Vila dos Pinheiros, não teve sorte. Sua avó Rosângela Ferreira vem tentando uma vaga para ele nas escolas mais próximas de sua casa, há dois anos, e continua sem conseguir. Com a ajuda da equipe da Redes da Maré, buscou a vaga para 3º ano logo no primeiro dia de pré-matrícula e, depois de repetidas tentativas virtuais, foi à 4ª. CRE pessoalmente três vezes e também visitou a Escola Municipal Bartolomeu Campos de Queirós, onde só recebeu negativas.

“Meu neto saiu de Cabo Frio, no estado do Rio, para morar comigo há três anos e desde então não consigo vaga para ele em nenhuma escola aqui próxima da comunidade. O tempo está passando, ele está crescendo e continua fora da escola. Eu pago explicadora para conseguir aprender alguma coisa mas é muito pouco”, conta a avó.

O caso do menino Fagnner ilustra de forma exemplar a questão de falta de vagas na Maré, sobretudo para os segmentos escolares iniciais, na região que inclui o Conjunto Esperança, a Vila do João, Salsa e Merengue, Vila dos Pinheiros e Conjunto Pinheiro, como explica a coordenadora do projeto Busca Ativa, Elza Sousa.

“A falta de vagas nessa região tem ficado cada vez maior. Há cinco escolas de primeiro segmento (1° ao 5° ano) e duas de 2° segmento (6° ao 9° ano) do Ensino Fundamental, que é muito pouco quando cruzamos os dados públicos do número de crianças da região, com o Censo ou levantamentos feitos por organizações de sociedade civil, como a Redes da Maré. Durante o período de pré-matrícula praticamente não havia vagas disponíveis para os três primeiros anos escolares, grandes gargalos naquela região. É preciso que os gestores estudem esses dados, se planejem e ajam para mudar a situação”, completa Elza.

O processo de matrícula nas escolas também expõe as múltiplas dificuldades que um novo morador da Maré pode esbarrar ao se mudar para o bairro. O bombeiro hidráulico desempregado Sérgio Luiz Oliveira Ribeiro veio com a família de 12 pessoas de Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, para morar na Vila do João, e só conseguiu algumas das vagas almejadas para seus filhos e netos depois de muito penar. Como os filhos ficaram fora da escola por um período, até mesmo o benefício do programa de transferência de renda do governo federal que ele recebia foi cortado:

“É tudo muito difícil para quem vem de fora. É preciso de muitos documentos, a gente bate na porta das escolas e ninguém dá informação. O CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) também vive cheio”, diz ele, que ainda precisa de vagas em creches para cinco crianças e matrícula para a filha Gabriela, de 10 anos, no 1º ano.

Segundo o levantamento feito pela campanha, na Maré faltam 36 vagas para creches, 104 para Ensino Fundamental e 24 para Ensino Médio. Os anos mais críticos são o 1º e 2º anos do Fundamental, com uma carência de 17 e 20 vagas, respetivamente.

Ao longo dos seis dias de campanha, a equipe da Redes da Maré se deparou com muitas questões práticas que dificultaram a pré-matrícula de crianças, adolescentes e adultos, a começar pela obrigatoriedade da pré-inscrição pela internet, para uma população que nem sempre tem celular ou computador. Outro problema é a divisão das escolas no sistema de inscrição por bairros: escolas da Maré às vezes apareciam como localizadas em bairros vizinhos. Outra dificuldade recorrente, depois da pré-matrícula realizada e a obrigatoriedade de confirmação da inscrição nas escolas confirmadas pelo sistema, foi da apresentação de documentos. Apesar de uma deliberação da Secretaria Municipal de Educação de 2019 garantir que em hipótese alguma a matrícula poderá ser negada por falta de documentos, na prática, muitos responsáveis perderam a vaga por não terem cópias da documentação exigida.

O mutirão Vamos pra escola teve como inspiração a campanha #VacinaMaré, realizada em 2021 pela Redes da Maré em parceria com a Fiocruz e Secretaria Municipal de Saúde, quando 93,4% dos moradores da Maré foram vacinados com pelo menos duas doses do imunizante contra a covid-19. A mobilização para a matrícula na escola pelas ruas e por locais de grande concentração de gente das favelas segue a mesma metodologia da campanha de vacina. A equipe da Redes atrai a atenção dos moradores, enquanto tira possíveis dúvidas sobre a matrícula, como aconteceu na movimentada feira de sábado da Rua Teixeira Ribeiro, na Nova Holanda.

“Começamos tímidos, conversando sobre a importância da educação, até que, aos poucos, as pessoas foram chegando e os feirantes foram se envolvendo. Impressionante como gente mais velha ficou interessada em voltar a estudar, enquanto também tiravam dúvidas de como matricular seus filhos ou mesmo fazer documentos”, conta Inês di Mare Salles, coordenadora pedagógica do projeto Nenhum a Menos, da Redes da Maré, que trabalhou na campanha. “Criamos um diálogo com a população e no final acabamos nos tornando referência, ali, no meio da feira, para falar de direitos do cidadão.”

Outro ponto positivo da campanha foram as parcerias com as associações de moradores. Ao todo, sete associações em diferentes favelas da Maré uniram forças no mutirão: Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Esperança, Marcílio Dias, Nova Holanda, Parque União, Roquete Pinto e Rubens Vaz. Na avaliação dos parceiros, a descentralização dos atendimentos e a ajuda na divulgação da ação entre frequentadores das associações fizeram com que mais famílias buscassem vagas.

“Foi uma parceria muito importante, de muita valia, porque muitos alunos que não estavam conseguindo vagas de jeito nenhum, conseguiram com a ajuda da equipe da Redes. Sabemos que a procura é sempre maior do que o número de vagas, entendemos que muitas vezes conseguir a vaga foge do controle de quem está tentando, mas houve muitos esforços para que todo mundo que veio aqui conseguisse seu lugar nas escolas. A avaliação dos moradores foi muito positiva”, avalia Vanessa Campos, secretária da Associação de Moradores do Conjunto Esperança.

Num outro extremo da Maré, a Associação de Moradores do Parque União também aplaudiu a ação conjunta, que não terminou com o fim das pré-matrículas, como ressalta Liliane Lopes, do setor social da AMPU.

“Os responsáveis perceberam na campanha que aqui se tornou um polo de informação e continuam vindo para pedir auxílio. É uma construção de parceria para atender aos moradores, por isso continuamos com um importante diálogo com a Redes da Maré, encaminhando os pedidos que vêm surgindo. A equipe do Eixo de Educação não mede esforços para cuidar de cada caso, nunca deixa ninguém sem resposta”, completa Liliane.

A campanha Vamos pra escola é uma ação do projeto Busca Ativa. Desde janeiro de 2021, uma equipe com seis articuladoras circula as 16 comunidades da Maré à procura de estudantes distantes das salas de aula. O objetivo é fazer a ponte para que voltem a estudar, buscando vaga por vaga junto às escolas da região, com apoio das redes municipal e estadual de ensino.

As articuladoras identificam os problemas que levaram a criança ou adolescente a deixarem a escola ou até mesmo nunca terem sido matriculados. A partir daí, tem início um trabalho de articulação territorial para que sejam acionadas redes de apoio locais e equipamentos públicos de educação, saúde e assistência social. No processo, a articuladora responsável faz o acompanhamento regular das estudantes, em visitas às casas ou por telefone. Em dois anos de trabalho, são 1.634 crianças e adolescentes cadastrados, e 3.464 acompanhamentos.

 

Campanha de Matrícula Escolar 2023, a Redes da Maré em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, está trabalhando na mobilização, para realização das matriculas municipais ano de 2023. Foto: Patrick Marinho

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