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Congresso internacional é inédito em favela do Rio de Janeiro

Julia Bruce

“Segurança pública não foi um direito que se estabeleceu nas favelas do Rio de Janeiro. É um direito humano e precisa ser estabelecido e reconhecido pelo Estado e sociedade civil. O Congresso tem essa perspectiva de experimentar o que é segurança pública numa região que todo mundo diz que não tem”, manifestou Eliana Sousa Silva, fundadora e uma das diretoras da Redes da Maré, na abertura do 1º Congresso Internacional Falando Sobre Segurança Pública na Maré, organizado pelo eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. O encontro foi realizado entre os dias 9 e 12 de agosto e reuniu mais de 300 pessoas, entre moradores da Maré, estudantes e pesquisadores, para conversarem e apresentarem trabalhos sobre a temática central: “Segurança pública e violências: contradições, controle social e desafios para garantia de direitos estruturantes”, no Centro de Artes da Maré, um dos equipamentos da instituição.

No dia antecedente ao Congresso Internacional, 9 de agosto, foi aberto o 1º Congresso Falando sobre Segurança Pública com Crianças e Adolescentes da Maré, que juntou 183 crianças e adolescentes até os 16 anos de idade. A coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, Liliane Santos, reforçou na abertura do Congresso que “o protagonismo do jovem está na própria construção do trabalho”, a partir de uma pergunta do público sobre como inserir a juventude da Maré no debate sobre segurança pública. O “Congressinho” foi um exemplo dessa prática.

Crianças e adolescentes do projeto Crias do Tijolinho, da Luta pela Paz, alunos da Escola Municipal Primário Erpídio Cabral de Souza (Índio da Maré) e outras assistidas por projetos da Redes - Primeira Infância na Maré: acesso à direitos e práticas de cuidado, Nenhum a Menos, Preparatório para o Ensino Médio e da Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto - participaram de diversas atividades ao longo do dia, como exibição do filme “Peixes não se Afogam”, de Anna Azevedo, confecção de cartazes sobre a temática da Segurança Pública na Maré, cortejo - que passou pelas ruas Ivanildo Alves - Rua C - Principal - Praça do 18 e pela Lona Cultural Municipal Herbert Vianna -, pintura em tecido e até a elaboração de propostas para a política de segurança pública na Maré, apresentadas aos pré-candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro no último dia do Congresso Internacional:

  1. Utilização obrigatória de câmeras nos uniformes policiais nas operações policiais das favelas;
  2. Treinamento mais humanizado aos profissionais de segurança pública;
  3. Construção de um plano para a redução da letalidade na operações policiais;
  4. Policiais deveriam causar menos danos nas casas dos moradores em dia de operações;
  5. Os policiais não devem ser julgados por militares ao cometerem alguma ação contra a lei.

 

Cortejo pela região da Nova Maré com as crianças e adolescentes no dia 9 de agosto de 2022, uma das atividades do 1º Congresso Falando sobre Segurança Pública com Crianças e Adolescentes da Maré. Foto © Patrick Marinho

 

1º dia de debates e apresentação dos artigos selecionados

Há 13 anos estava sendo criado o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça na Redes da Maré. Liliane Santos conta que, desde 2009, começaram as primeiras discussões sobre os atravessamentos da segurança pública na educação. No decorrer da sua trajetória, houve a consolidação do monitoramento de confrontos armados e do projeto Maré de Direitos e a expansão do eixo com a criação de projetos e ações como o “De Olho na Maré” (2016), o “Maré de Direitos” (2016), a campanha “Somos da Maré. Temos Direitos!” (2012) e o “Memorial Maré” (2019). Todos esses e os demais projetos traduzem os objetivos deste eixo de trabalho e retratam pontos em comum aos três dias de debates do Congresso Internacional: percepção e reivindicação da segurança pública enquanto um direito humano fundamental por parte dos moradores das 16 favelas da Maré; superação do debate da segurança pública caracterizado apenas pelo enfrentamento bélico nas favelas; e o fortalecimento das tecnologias sociais dos moradores no enfrentamento à situações de violência.


“Como a gente disputa essa narrativa com a própria polícia?” foi uma das questões colocadas no primeiro dia. “Ensinamos os moradores a se auto defenderem em dias de operação ou em situações de violência o tempo todo. A maioria dos sonhos que os moradores contam são direitos”, alertou Liliane Santos.

 

Intervenção artística do projeto “A Maré Começa Aqui”, promovida pelo eixo Direitos Urbanos e Socioambientais, que chamou a atenção para um outro tipo de violência: a violência ambiental, caracterizada pelo racismo ambiental, como a reccorência de entupimento dos bueiros, demonstrando a ausência de políticas públicas. Foto © Patrick Marinho

 

Em uma das conversas (“O Contexto da Violência Armada na Maré” - 10/08), o histórico da construção social e como a violência armada era (e ainda é) atravessada no território da Maré foi resgatado e orientado ao público. “A segurança pública é uma discussão que não pode ficar apenas com a polícia ou o Estado. A favela sempre foi estigmatizada como um lugar dos criminosos, um lugar de onde saem as doenças. É mais fácil você estigmatizar primeiro do que justificar. O modelo de segurança pública não protege a vida, precisamos discutir sobre propostas. Temos que olhar sobre as favelas de outros jeitos e reconhecer as potencialidades. Esses movimentos precisam estar na nossa agenda”, afirmou o cofundador e ex-diretor da Redes da Maré, Edson Diniz. Junto ao conhecimento da memória, faz-se presente a construção de uma nova narrativa pelos próprios mareenses, por meio do engajamento político.


“O motivo da maioria das operações policiais na chamada política de “guerra às drogas”, na verdade, é uma “guerra a pessoas específicas: ao corpo negro, a pessoas periféricas, já as drogas estão para todos”, comentou Raull Santiago, cria do Complexo do Alemão e fundador dos coletivos Papo Reto, Movimentos, Perifa Connection, Favela & ODS.

A primeira infância também foi uma das pautas debatidas durante o dia. Raull comentou que precisa ensinar seu filho a como se proteger e como se comportar em ambiente de conflitos, como reagir quando ao ver um policial. Nesse processo de fortalecimento das novas gerações, um dos grandes desafios que permanecem é como explicar para as crianças o que está acontecendo. “Não tem como mascarar, é pensar na linguagem. A pergunta mais recente que tive do meu filho de 6 anos ao passar por um grupo de jovens armados foi: ‘por que eles estão com armas nas mãos?’”. Um dos projetos do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado, trabalha justamente com essas pautas, buscando criar caminhos e condições para ampliar direitos de crianças de 0 a 6 anos, além de identificar, conhecer e fortalecer práticas de cuidado e atenção envolvendo as famílias e a comunidade da Maré.

 

O primeiro dia também foi composto pela apresentação dos artigos que permearam sobre três temáticas: ‘Ampliação do Poder de Cidadania, Controle Social e Direitos Humanos’; ‘Capitalismo, Racismo e Violência Policial; e ‘Desigualdades Sócio-racial, Acesso à Justiça, Acolhimento e Acompanhamento de Vítimas de Violência’. As rodas de conversa contaram com a participação de 25 pessoas em cada, não apenas da academia, mas de jovens estudantes e tecedores da Redes da Maré, como a Kamila Camillo, psicóloga do eixo de Educação da Redes da Maré, em seu artigo “Trabalho com grupos: a democratização da informação e contribuição para o debate sobre a violência”, em conjunto com Maria Daiane de Araújo Alves e Carolina Araújo dos Santos. Ela explicou um pouco sobre como os grupos são trabalhados em sua rotina: “O percentual de mulheres atendidas por nós que sofrem violência é maior que 35%. Ela não consegue identificar outros tipos de violência além da física - a psicológica é a que aparece mais. A partir dos relatos, fazemos um ciclo de debates, rodas de conversa com adolescentes e pais/responsáveis, sempre o mesmo tema para todos. O bullying também tem aparecido muito nesse campo, falando de violência psicológica, por exemplo”.

 

2º dia: Maré foi alvo de operação policial no segundo dia do Congresso Internacional

O segundo dia do Congresso Internacional foi marcado por uma operação policial em algumas favelas da Maré: Parque União, Nova Holanda, Parque Maré e Rubens Vaz foram acordados na madrugada do dia 11/08 com o barulho de tiros e sobrevoo de helicóptero. Muitas pessoas foram surpreendidas com a abordagem e invasão policial em domicílios e em estabelecimentos sem mandado judicial, inclusive tecedores da Redes da Maré. Três pessoas foram feridas durante o confronto e encaminhadas para o Hospital Federal de Bonsucesso, mas duas não resistiram. A Política Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) informou em nota que a ação foi feita para cumprir um mandado de prisão dos responsáveis pela morte do policial militar Sandro Santos da Silva, que aconteceu em janeiro deste ano na Avenida Brasil.

 

A operação durou ao longo do dia, mas a programação do Congresso foi mantida. “A Redes é movimento o tempo inteiro”, alertou Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. Foto: Reprodução/Maré de Notícias

 

Lançamento de boletim sobre outros tipos de violência na Maré

Além das rodas de conversas e apresentação de mais artigos dos eixos temáticos ‘Mídia, Meios de Comunicação e Favela’, e ‘Produção do Espaço Urbano, Território, Segurança Pública e Favelas’, o destaque do dia foi o lançamento do Boletim de Monitoramento e Enfrentamento às Violências na Maré, que sistematizou informações referentes a outros tipos de violências que acometeram moradores do conjunto das 16 favelas da Maré no período de julho de 2021 a junho de 2022. O Boletim é um dos produtos do projeto “De Olho na Maré” e é fruto do trabalho coletivo de profissionais dos cinco eixos de trabalho da Redes da Maré. Ao longo de um ano de atendimentos, as equipes se comprometeram a registrar o perfil das vítimas, a tipologia e a dinâmica dos casos de violências que chegassem até os plantões da organização. Além dos dados quantitativos, a reflexão por parte das equipes de atendimento foi fundamental para compreender e aprofundar o conhecimento sobre os fenômenos e propor novas estratégias para o enfrentamento às diversas situações de violência. Veja o material completo aqui.

Um das mesas temáticas do dia foi a “Territórios de Partilha: Racismo Estrutural e seus Impactos no Sistema de Justiça Brasileiro” que reuniu o professor do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Jadir Brito, a Defensora Pública e doutoranda em direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), Lívia Casseres, e o advogado e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB), Luciano Góes. “Quando pedimos para o Estado justiça, o que verdadeiramente estamos pedindo? 85% do sistema judiciário é composto por pessoas brancas e 70% do sistema carcerário é formada por negros. O corpo negro foi construído como inimigo. Isso tem uma forte repercussão nas comunidades. Repensar essa guerra é repensar na nossa Constituição. Desde quando nós somos um estado laico? O direito penal sempre será seletivo”, atentou Luciano, sobre o quanto a estrutura do sistema judiciário e da defensoria pública está fora das favelas e periferias.

O segundo dia foi encerrado com uma intervenção artística do Núcleo 2 da Escola Livre de Dança da Maré. Gritos iniciaram a apresentação: “Não vão mais nos calar!”, “Eu não calo”, “Pois a submissão não é o nosso lugar”, “Eu não aguento mais!”, “Não aceitamos mais nenhum tipo de agressão!”, “Basta!”, “Você não manda em mim!”, “Juntas somos mais fortes e unidas damos a volta por cima, eu te convido mulher, vamos curar essa ferida”. Em seguida, outros artistas começam a apresentar alguns dados, finalizando com a importância de denunciar a violência contra mulher através do 180, de outras violações dos direitos humanos no Disque 100, e o atendimento pelo WhatsApp da Redes da Maré.

 

Participação de congressista internacional

O representante internacional, Juan Sebastian Bustamante, debateu na roda de conversa “Reflexões sobre programas e políticas governamentais na política de segurança pública” sobre um caso de sucesso da cidade de Medellín, na Colômbia. “Nos anos 1990, ela era a cidade mais violenta do mundo, mas passou por um modelo de transformação profunda e, hoje, a polícia que menos mata é a de Medellín”, explicou o coordenador de projetos do URBAM - Centro de Estudos Urbanos e Ambientais da Universidade EAFIT/Colômbia.

Projetos urbanos integrais e a inclusão serviços de cultura, arte e memória foram alguns dos trabalhos feitos com organizações comunitárias da região nesse modelo de transformação que deu certo. “Temos que dar um relato de esperança nesses territórios e mostrar o que tem além das questões negativas. Este espaço [o CAM] transforma, aqui há luz, amplitude, é um espaço que promove cuidados para as crianças da Maré”, afirmou Juan.

Sobre a “Mães em Diálogo: Roda de Conversa com mães de vítimas de violências e negligências do Estado”, com a participação do Grupo de Mães do Rio de Janeiro, que perderam seus filhos pela violência das operações policiais, Juan acompanhou e reforçou: “São testemunhos que não podemos escutar mais”.

 

3º dia: debate com os pré-candidatos a governo do Estado do Rio de Janeiro

O último dia do Congresso Internacional Falando Sobre Segurança Pública na Maré foi marcado pelo primeiro debate dos pré-candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro em um território de favela da cidade, mediado pelo jornalista, escritor e editor adjunto do Maré de Notícias. O momento foi dividido em blocos de perguntas da organização do Congresso, pergunta do Fórum Basta de Violência: Outra Maré é Possível - projeto que envolve uma articulação dos moradores, das Associações de Moradores, instituições públicas e não governamentais do território e outros atores estratégicos - representado pelo Arthur Vianna, coordenador da campanha “Somos da Maré. Temos Direitos!”, falas finais de cada candidato, além da apresentação por quatro jovens da Maré de cinco propostas para a política de segurança pública.

Questões como: Quais são as propostas para garantir os direitos básicos que são penalizados historicamente?; Qual a avaliação dos senhores sobre a atual política de segurança pública e qual seria a proposta para a resolução dessa política de segurança pública? Pretendem retornar com a secretaria de segurança?; e Qual o papel da sociedade civil para que o direito à vida seja preservado?, foram algumas colocadas durante o debate. A transmissão ao vivo foi realizada pelo Maré de Notícias e pode ser conferida aqui.

Todos os artigos apresentados serão publicados em breve aqui no site da Redes da Maré e no site do Congresso.

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