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Luta e trabalho coletivo marcam o lançamento do boletim Direito à Segurança Pública na Maré

Julia Bruce

“O quanto a gente está vivo é motivo de grande comemoração e prestígio. Estar vivo, reunido e construindo outra forma de política pública, de segurança pública num território de favela, é realmente muito potente e, ao mesmo tempo, assustador. Eu sei da potência que é a favela produzir os próprios dados, produzir conhecimento sobre si e publicizar isso de forma ampla para dentro e para fora do território”, enfatiza a coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, Liliane Santos, durante o lançamento da 7ª edição do boletim Direito à Segurança Pública na Maré, que aconteceu na semana passada, dia 13/03, no Galpão RITMA, no Parque Maré, uma das 16 favelas do conjunto de favelas da Maré. O boletim é uma publicação anual que acontece desde 2016.

A programação do primeiro dia do lançamento contou com a presença do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, da Assessora Especial do ministro, Tamires Sampaio, do Secretário de Acesso à Justiça e advogado popular, Marivaldo Pereira, além de organizações e coletivos de outras comunidades do Rio de Janeiro para debater os desafios no campo da segurança pública nesses espaços. Participaram ainda representantes do Coletivo Papo Reto, LabJaca, Instituto de Defesa da Pessoa Negra (IDPN), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Movimentos, Mulheres do Salgueiro e o Grupo de Estudos e Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF).

“Essa foi uma das cinco reuniões do início deste ano mais importantes pra gente porque isso é vital, no sentido do poder com participação popular. É importante pelo território e pelas entidades da sociedade civil que aqui estão. A minha presença aqui visa exatamente fazer esse processo de escuta, de aprendizado com essa valiosíssima produção de dados e de conhecimento. Esses dados do boletim estão sendo incorporados ao patrimônio de trabalho do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Nós estamos juntos com vocês, nós queremos trabalhar com vocês e fazer o máximo que seja possível!”, comentou o ministro. 

 

Leia aqui a nota da Redes da Maré sobre a divulgação de fatos distorcidos que se sucederam à visita do ministro, Flávio Dino, no Parque Maré.

 

Flávio Dino e representantes das organizações e coletivos da sociedade civil. Foto: Gabi Lino

 

 

Sobre os dados do Boletim

Durante o ano de 2022, 27 operações policiais ocorreram nas 16 favelas da Maré, ocasionando 39 mortes por armas de fogos, 283 violações de direitos a moradores e a suspensão das atividades nas unidades de saúde por 19 dias e, por 15 dias, nas escolas. Esses são alguns dos dados alarmantes que foram mapeados pela equipe do De Olho na Maré, projeto que coleta e sistematiza informações sobre situações de violência na Maré desde 2016 e originou, até agora, sete edições do boletim Direito à Segurança Pública na Maré, o que demonstra a capacidade de comparação e de percurso da situação na Maré.

A metodologia de coleta para a construção de dados parte de várias fontes de informação até que possam virar dados, por meio de grupo de colaboradores (associações de moradores, instituições locais etc) que informam sobre a violação de direitos no plantão do Maré de Direitos quando há operações no território; de pesquisa em redes sociais, na mídia e informações oficiais através das assessorias de comunicação das polícias - para entender o objetivo daquela ação e se foi alcançado ou não. Ao longo do ano, a equipe do projeto organiza e analisa o banco de dados e o transforma no boletim.

“Tentamos expor mais uma dimensão qualitativa para traduzir como é o cotidiano de operações para os moradores. Em novembro de 2022, aconteceu uma operação com três pessoas desaparecidas. Ficamos com os familiares por mais de três horas indo em hospitais e delegacias de polícia para tentar encontrá-los. Chamamos esse fenômeno de 'desaparecimentos temporários', quando o poder público não tem o fluxo de informação oficial que possa trazer para os familiares. Essa situação, por exemplo, traz uma dimensão qualitativa, que os números não mostram. E foi isso que a gente tentou trazer no boletim, de contar histórias como essas, de trazer essa dimensão do cotidiano das operações policiais”, explica a coordenadora do projeto De Olho na Maré, Camila Barros.

O ano de 2022 apresentou o maior número de mortes em operações policiais dos últimos três anos, com aumento de 145% em comparação a 2020, com 5 mortes, e 2021, com 11.

No ano de 2017, a partir do trabalho do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça em articulação com a Defensoria Pública, Ministério Público, moradores e representantes de instituições e organizações locais, que previa uma série de medidas para diminuir os riscos e os danos durante os recorrentes confrontos armados, incluindo as operações policiais, a Ação Civil Pública da Maré foi conquistada originando a “ADPF das Favelas”. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 foi um marco histórico na luta pela diminuição da letalidade em ações das polícias que aconteceram nas favelas. Segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI), a restrição das operações policiais salvou, ao menos, 288 vidas em 2020. Nas favelas da Maré, entre 2019 e 2020, as mortes em operações policiais reduziram 82% após a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, apesar dessa redução temporária, em 2022, o cenário mudou: 62% das operações policiais aconteceram próximo a escolas e creches e 67% aconteceram próximo a unidades de saúde - situações proibidas pela ADPF; 60% das operações policiais tiveram invasão de domicílio; em nenhuma operação de 2022 teve ambulância para socorrer os feridos. Das 27 mortes em operações policiais ocorridas nas 16 favelas da Maré, 24 tiveram indícios de execução e em nenhuma foi identificada perícia dentro dos parâmetros normativos. Também não foram identificados o uso de câmeras de vídeo e aparelho de GPS nos equipamentos dos policiais. Esses são alguns exemplos de práticas que não são aceitas pela ADPF das Favelas, mas que continuam acontecendo.

 

Coletivos que fazem a força

A coordenadora geral e co-fundadora do Coletivo Mulheres do Salgueiro, do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Janete Nazareth, entregou uma Carta de Intenções construída coletivamente pelas organizações presentes. O documento apresenta pautas e propostas centrais no trabalho cotidiano dessas instituições nos campos da Participação Social e Controle das Polícias; Estruturação e Regulamentação da Política de Segurança Pública; Sistema Penitenciário; Política de Drogas; Política de Reparação e Memória e Controle de Armas:

“Trazemos, neste documento, propostas que vêm sendo pensadas e refletidas coletivamente a partir de nossa atuação na produção de dados e processos de diálogo com o poder público. Para garantia de direitos das mais de 17,1 milhões de pessoas que vivem em favelas no Brasil (cerca de 8% da população brasileira), é fundamental a construção de uma política de segurança pública e acesso à Justiça que preserve e valorize nossas vidas. É urgente enfrentar o racismo que estrutura a sociedade brasileira e estrutura processos de violências e violações de direitos de pessoas negras nesse país.”

 

Leia a carta na íntegra

 

Janete Nazareth, coordenadora do Coletivo Mulheres do Salgueiro, na entrega da Carta de Intenções ao ministro. Foto: Gabi Lino

 

O dia também foi marcado pela leitura de um manifesto do Coletivo de Mães da Maré que perderam seus filhos durante operações policiais. Os dados do ano de 2022 do boletim e do storymaps do projeto “De Olho na Maré”, também da Redes da Maré, que compara os dados de 2017 a 2022, também foram apresentados no evento, que contou ainda com a participação dos poetas de SLAM Math de Araújo e Stacy Ferreira. 

 

Apresentação de SLAM, com Math de Araújo e Stacy Ferreira. Foto: Gabi Lino

 

MANIFESTO DAS MÃES

As famílias, crianças, jovens e adultos, moradores dos territórios de favelas têm o direito de sonhar, realizar, progredir, evoluir e crescer
Precisamos de respeito, cidadania, compreensão e compaixão
Tirem a mira de nossas cabeças, nos deixem viver para que possamos ter a oportunidade de contar nossas vidas e viver nossos sonhos
Não somos alvos
Não somos caça
Não olhem para a Maré como se fosse um safari
Chega de chacina nas favelas, queremos o direito de ir e vir
Queremos justiça atuante
Favela quer vencer
Vidas negras importam
Clamamos por justiça, educação, igualdade, reparação
Nossos mortos têm voz, nossos filhos têm mães, somos a voz dos nossos filhos
Nunca vamos desistir de lutar por um Brasil melhor
Somos mães e estamos vivas
Vamos contar as histórias dos nossos filhos, cuja as vidas interrompidas, os impediu de concretizar seus sonhos

 

 

No dia do lançamento do boletim, também foi aberta a exposição itinerante “Impactos da violência armada na Maré”. Observando as telas da exposição, coordenada por Odir dos Santos, fundador do Instituto Social Encontro das Artes, o público visitante teve a oportunidade de visualizar melhor o que o boletim estava querendo mostrar. Foram 11 telas pintadas por diversos artistas locais, como Odir e Marco Antônio de Souza. Cria da comunidade de Vigário Geral, Zona Norte, e professor no Instituto, Marco reforça que os principais propósitos do projeto são tirar as crianças da violência e “crer que já deu certo”. “Na nossa infância procuramos ter uma atividade, mas não tínhamos oportunidade. Meu sonho era ser jogador de futebol e acabei me envolvendo na criminalidade, mas tudo é pela direção de Deus. Hoje, nossas crianças conseguem ter oportunidades através da Redes, do Encontro das Artes, etc. Conheci Odir dentro do cárcere onde começamos a trazer atividades de arte. Ao sair, ele foi me procurar, outros ex-presidiários se juntaram e criamos o Instituto. As pessoas nos olhavam diferente, mas hoje, nos enxerga com um olhar de transformação”.

As aulas de pinturas são destinadas a crianças e jovens de 8 a 14 anos. Conheça mais sobre o projeto aqui.

 

Para quem tiver interesse, a visitação ainda pode ser realizada até 31 de março com agendamento pelo e-mail: eixosegurancapublica@redesdamare.org.br

 

 

Pintores da exposição. Da esquerda para a direita: Ronald Chagas, Marco Antônio Souza, Odir dos Santos e Vando Fernandes. Foto: Gabi Lino

 

Apresentação dos dados do Museu de Arte do Rio (MAR)

Em parceria com o Museu de Arte do Rio (MAR), os dados do boletim Direito à Segurança Pública na Maré também foram apresentados como parte da agenda colaborativa do “Março por Marielle e Anderson”, no dia 14/03. Um dos pontos em comum percebidos nos dois dias de evento foi a felicidade e surpresa de moradores de outras comunidades da cidade em conhecer uma outra metodologia de trabalho da Redes da Maré, que é a produção de conhecimento.

Cristiane da Silva, 51, e Cláudia Vicente, 48, são irmãs e moradoras do Complexo do Chapadão, conjunto de mais de 20 comunidades localizado entre os bairros de Costa Barros, Pavuna, Anchieta, Guadalupe e Ricardo de Albuquerque, todos na zona norte do município e contaram sobre a importância em ter um evento da favela no espaço do museu. “A minha sugestão é vocês fazerem visitas em outras comunidades para expor esse trabalho que eu pude ver hoje aqui. Tem muitas pessoas da nossa comunidade que querem fazer algo, mas não têm motivação”, opina Cláudia. Cunhada de Cristiane e Claúdia, Denise Eugênio, 54, ainda comenta que “foi bom ter esse espaço do Museu, porque a comunidade precisa de chance de falar”.

 

Leitura do manifesto do Coletivo Mães da Maré, em homenagem aos seus filhos, vítimas da violência armada da Maré. Foto: Gabi Lino

 

A coordenadora geral e cofundadora do Coletivo Mulheres do Salgueiro, Janete Nazareth, conta que não tem o conhecimento de nenhuma organização em São Gonçalo que tenha um viés de sistematização de dados e produção de conhecimento. “Está tudo muito solto. As comunidades geralmente fazem seus grupos para se comunicar, mas nada que depois seja sistematizado, que tenha uma informação mais concreta. Estar aqui com vocês hoje traz essa sinergia. Claro que cada comunidade é diferente da outra, tem suas particularidades, mas o que desse universo que vocês estão construindo aqui há tanto tempo, conseguimos tirar e fazer alguma coisa do lado de lá para dar voz? Ainda somos muito invisibilizados, mas o sofrimento é o mesmo.”

 

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