Estamos diante de um momento histórico que pode redefinir as experiências de vida das mais de 108,7 milhões de mulheres brasileiras, especialmente as mulheres negras e pobres, que são a maioria. Foi iniciado o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentaais 442.
Sabemos que esta é uma das maiores questões que dividem opiniões na sociedade brasileira, mas a despeito de posicionamentos pessoais sobre o aborto, a sua criminalização em si é um dispositivo que viola direitos humanos e submete mulheres e meninas, em especial pobres e negras, a condições degradantes e análogas à tortura.
O aborto é uma prática recorrente no Brasil: aos 40 anos, 1 em cada 7 mulheres brasileiras já realizou pelo menos um aborto na vida, segundo a mais recente Pesquisa Nacional do Aborto, e mulheres negras têm 46% mais chance de fazer um aborto do que mulheres brancas, segundo o estudo Aborto e Raça. Entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto apenas em hospitais da rede pública de saúde do Brasil, de acordo com estudo da Gênero e Número.
Em vez de proteger vidas, o que a criminalização desta prática produz é ainda mais riscos à vida de mulheres que acabam recorrendo a formas inseguras e invasivas, quando já existem meios medicamentosos e humanizados extremamente eficazes de se interromper uma gestação indesejada, com diretrizes da própria Organização Mundial da Saúde.
Evidências científicas do mundo todo demonstram que a criminalização do aborto não apenas aumenta a mortalidade materna sem reduzir a ocorrência de abortos, mas também afeta desproporcionalmente os direitos de mulheres racializadas e periféricas. No Brasil, ainda que existam situações em que a lei permite a realização de aborto – nos casos de violência sexual, risco à vida e anencefalia – são as mulheres e meninas pretas e pobres que encontram barreiras significativas de acesso ao que lhes é de direito. Estas barreiras violam sua integridade e dignidade.
Na Redes da Maré, temos buscado identificar e atuar para a superação dessas barreiras de acesso a direitos reprodutivos e sexuais. Os limites de acesso a métodos contraceptivos e informações de planejamento familiar são um exemplo de como a concretização dos direitos acontece de maneira diferente para mulheres a depender de sua cor e classe social. Em 2022, a partir do projeto Maréas, identificamos 287 mulheres que buscavam métodos contraceptivos alternativos ao uso de hormônios e têm dificuldades no acesso às unidades básicas de saúde da Maré.
Através de atendimentos da Casa das Mulheres da Maré, temos identificado diversos obstáculos para a garantia do direito ao aborto, juridicamente permitido, para as mulheres moradoras das 16 favelas da Maré. Somado a isso, destacam-se as negligências do sistema de justiça no acolhimento de mulheres e meninas da Maré vítimas de violências diversas.
Enfrentamos, junto a grupos de mulheres e profissionais da rede de proteção social, os desafios estruturais para a construção de uma Justiça Reprodutiva que garanta o direito das mais de 70 mil moradoras da Maré. Os desafios são muitos e estão diretamente associados a uma cultura que criminaliza mulheres e meninas que precisem interromper suas gestações. Elas devem ser presas? Elas devem ser mortas?
Em 22 de setembro, a Ministra relatora, Rosa Weber, emitiu seu voto farorável à não recepção dos artigos 124 e 126 do Código Penal que tornam a prática de aborto um crime punível com privação de liberdade por até 4 anos. Como um dos últimos atos antes de sua aposentadoria, Rosa Weber reitera que a criminalização é ineficaz e produz impacto desproporcional sobre mulheres negras e pobres. Trata-se de um posicionamento histórico e que reitera a luta de grupos de mulheres que lutam há anos pelo direito de decidir com autonomia sobre suas vidas. A votação da ADPF 442 deve prosseguir de forma presencial, com o pedido de destaque do Ministro Luís Roberto Barroso, ainda sem data para a conclusão.
A Redes da Maré segue acompanhando o posicionamento dos demais ministros do STF sobre esta questão tão urgente para a vida das mulheres negras, pobres e faveladas. Diante da gravidade das situações de violências e negligências que acometem essa parcela da população, consideramos urgente um debate amplo, democrático e que priorize a saúde e preserve a vida destas mulheres. Da mesma forma, seguimos acompanhando a indicação de quem ocupará a cadeira de Rosa Weber a partir de sua aposentadoria. Tomando a importância do legado que Rosa deixa para a luta pela descriminalização do aborto no Brasil, consideramos fundamental e não podemos deixar de reivindicar uma mulher negra como ministra pela primeira vez na história do STF. Certos notórios saberes, apenas a experiência ensina.
Redes da Maré
Rio de Janeiro, september 25, 2023
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