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Dia nacional da população em situação de rua: uma luta na contramão da invisibilidade

Agosto é o mês em que se marca o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Foi em 2004, entre os dias 19 e 22 de agosto, que ocorreu o “Massacre da Sé”, talvez um dos dias mais violentos na vida da população em situação de rua. Nessa data, 15 pessoas que utilizavam o espaço da Praça da Sé, em São Paulo, como moradia improvisada, foram brutalmente atacadas na calada da noite, resultando em sete mortos e oito feridos gravemente (1)

Infelizmente, pessoas em situação de rua viveram e seguem vivenciando diversos e recorrentes episódios violentos por parte do Estado, responsável por criar políticas públicas de proteção à vida e garantia de direitos. Na contramão desses princípios constitucionais, o Estado submete essas pessoas à violência, obrigando a retirada de seus pertences de vias públicas, em ações de “ordem pública”, numa política de sanitização e não de cuidados nem de redução de danos. 

Portanto, este Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua é um marco importante de busca por garantia de direitos das pessoas que vivem nessa situação, das instituições que trabalham promovendo ações de cuidado, dos agentes públicos que devem agir em prol da proteção dos direitos humanos e do cidadão, de forma equânime, e das organizações da sociedade civil que seguem pressionando para que sejam cumpridos. 

Esse dia é também um dia simbólico, pois sinaliza que mesmo as pessoas que vivem nas situações mais extremas seguem sendo cidadãos capazes de se organizar e lutar por seus direitos e pela visibilidade que merecem ter em uma sociedade democrática. Na contramão dos discursos que tentam retirar a humanidade desses indivíduos, caracterizando-os para consolidar no imaginário coletivo a justificativa de recortá-los e subjugá-los de modo a parecer natural sua exclusão da sociedade, esses sujeitos mostram que são capazes de formular propostas, organizar um movimento e liderar ativamente sua presença cidadã. 

Política pública

A formulação de políticas públicas voltadas para essa população só entrou na agenda do governo federal nos anos 2000. Antes só existiam políticas que visavam o controle (2). O marco dessa mudança é a instituição da Política nacional para população em situação de rua (3), promulgada em 2009. “Essas políticas públicas inauguram um novo modelo de relacionamento do Estado com esta população. Se antes as ações estatais eram marcadas pela ausência de padronização nacional e  pela  perspectiva  caritativa ou  repressora, a  partir  desse  período  o  governo  federal  passa a propor políticas públicas que visam propiciar autonomia a essas pessoas, garantindo seu acesso aos serviços públicos. Tais propostas de afirmação de cidadania e efetivação de direitos exigiram um amplo e complexo processo para serem implementadas, o que significa afirmar que as mudanças ocorreram parcial  e  localizadamente, coexistindo  com iniciativas  do  poder  público caracterizadas pelo controle e repressão às pessoas em situação de rua, como expõe José Carlos Gomes Barbosa, em sua tese ao IPEA (4).”

A Nota Técnica do IPEA nº 73, publicada em junho de 2020 (5), apresenta uma estimativa de 221.869 pessoas em situação de rua no Brasil, em março deste ano. O estudo destaca que análises preliminares  de  dados  diários  do  Cadastro  Único  para Programas Sociais – CadÚnico – já indicam a  possibilidade  de  algum  efeito  da  pandemia. Mas, de certo, é nítida a aceleração recente do número de pessoas em situação de rua cadastradas, provavelmente muito relacionada à crise econômica e ao desemprego dos últimos anos e  é  nesse  cenário  já  preocupante  que a pandemia do coronavírus impõe seu desafio (6).

Segundo o jornal Extra (7), de janeiro a junho deste ano, 32.247 pessoas  em  situação  de rua foram atendidas pelos equipamentos da assistência social e 7.192 passaram  pelas instituições de acolhimento no Rio de Janeiro (dados da Secretaria  Municipal  de  Assistência  Social  e  Direitos  Humanos  -SMASDH).  A  matéria,  publicada  no  dia 03 de julho, relata que teria havido, segundo a defensora pública Carla Beatriz   Maia, um aumento significativo no número de pessoas em situação de rua nos últimos meses na cidade do Rio de Janeiro e em outras como Angra dos Reis, Vassouras e Nova Friburgo. A Prefeitura do Rio não sabe informar o tamanho  dessa população e, tampouco, o número de infectados pelo novo coronavírus. O último levantamento oficial foi realizado em 2016 e contou 14 mil pessoas  morando nas ruas da cidade. 

A Redes da Maré trabalha desde 2015 com a população em situação de rua na Maré e no entorno. A partir de um projeto de pesquisa e ação que teve duração de 3 anos, a instituição lançou, em março de 2018, um espaço de referência para pessoas em situação de rua e com uso abusivo de drogas, o Espaço Normal, nome dado em homenagem a um morador de uma cena de consumo situada dentro da Maré que era uma liderança e veio a falecer após ser alvejado em um confronto armado. O espaço é orientado pelo fortalecimento dos vínculos sociais através da convivência, do acolhimento, da articulação em rede e da sensibilização com e para a comunidade para a promoção de práticas de cuidados pautadas na construção de políticas de drogas garantidoras de direitos. A partir do espaço físico da casa são desenvolvidas atividades com pessoas que usam drogas, ações de apoio a usuários e usuárias nas ruas, orientação a familiares e interlocução constante com serviços públicos de saúde, assistência e segurança, além de moradores, comerciantes da Maré e instituições locais (8)

Frente à pandemia da Covid-19, a Redes da Maré iniciou, em meados de março, a campanha "Maré diz NÃO ao Coronavírus", com o objetivo de reduzir os impactos da pandemia na vida dos moradores da Maré. O Espaço Normal, assim como outros equipamentos da organização, teve que fechar seu atendimento ao público para evitar o contágio e a contaminação da população atendida.  Para manter o cuidado dos usuários, foi elaborado o projeto Sabores e Cuidados, que atende dois grupos já assistidos pela instituição: a população atendida pelo Espaço Normal, que recebe diariamente refeições, e as cozinheiras do buffet Maré de Sabores, uma ação da Casa das Mulheres da Maré que ficou sem atividade durante a pandemia, mas que agora prepara esses alimentos e também gera renda para essas mulheres.

A entrega das refeições propicia o acompanhamento das pessoas em situação de rua, que são visitadas diariamente por membros da equipe para acompanhar suas demandas e questões relacionadas à saúde. A partir de uma rede de parceiros institucionais já construída no território, essa equipe articula o atendimento dessas demandas e os encaminha às unidades de saúde, consultório de rua e CAPS. 

A Redes da Maré, como organização da sociedade civil, segue promovendo ações para melhorar as condições de vida dos moradores da Maré. No entanto a instituição tem clareza do papel do Estado no desenvolvimento e cumprimento de políticas públicas, essenciais para a mudança de condições estruturais que colocam indivíduos em condições de extrema desassistência. Por isso, a instituição faz coro à demanda apresentada por outras organizações parceiras que trabalham e atuam com a população em situação de rua para que o poder público assuma a responsabilidade de garantir políticas públicas específicas pela garantia de direitos, protegendo e auxiliando durante a pandemia. São elas:

[A] O acesso à moradia, tendo em vista que as medidas de prevenção ao contágio pelo Covid-19 ainda compõem a melhor estratégia para mitigar as consequências da pandemia na saúde da população. Sendo assim, adotar o isolamento social deve ser um direito acessível e de fácil execução para as populações mais vulneráveis, tendo o acesso à moradia digna em primeiro lugar ou, como um “trânsito” à moradia digna e de qualidade, o acesso às unidades de acolhimento transitório em segundo lugar.

[B] A elaboração de estratégias para descomplexificar o acesso à renda emergencial pelas populações mais vulneráveis, já que as medidas propostas pelo governo federal têm sido mais um dos entraves para o acesso a direitos durante a pandemia. O que tem sido visto é que as pessoas em situação de rua encontram dificuldades para solicitar o auxílio e, quando conseguem, muitos têm o auxílio emergencial negado.

[C] O direito à saúde pública, que deve ser também uma preocupação do Governo do Estado do Rio de Janeiro, bem como de todo o poder público executor de políticas públicas. Se há preocupação com a condição de saúde da população é preciso pensar em medidas que fortaleçam e garantam o acesso às políticas de saúde. E uma das formas de viabilizar o acesso das populações vulneráveis às políticas de saúde é investir nos equipamentos responsáveis por atender e acolher a população em situação rua, tal como o Consultório na Rua.

Entendemos que esse público necessita de políticas estruturadas e de longo prazo e esperamos que as políticas direcionadas às pessoas em situação de rua seja para além do período da pandemia.

Por Luna Arouca, coordenadora do Espaço Normal, da Redes da Maré

 

Notas de rodapé

(1) http://direito.mppr.mp.br/2018/08/27/Dia-Nacional-de-Luta-da-Populacao-em-Situacao-de-Rua.html#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de,luta%20pela%20garantia%20de%20direitos.

(2) https://www.ipea.gov.br/sites/images/mestrado/turma2/jose_carlos_gomes_barbosa.pdf

(3) https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/politica-nacional-para-a-populacao-em-situacao-de-rua#:~:text=A%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20para%20a,nove%20minist%C3%A9rios%20que%20o%20comp%C3%B5em.

(4) https://www.ipea.gov.br/sites/images/mestrado/turma2/jose_carlos_gomes_barbosa.pdf

(5) https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf

(6) Leia a publicação da Redes da Maré, “De Olho no Corona!” - edição 10, de 09 de julho de 2020, que trata do tema aqui https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes

(7) https://extra.globo.com/noticias/rio/sem-dinheiro-do-aluguel-pessoas-que-perderam-trabalho-na-pandemia-fazem-crescer-populacao-de-rua-no-rio-rv1-1-24513119.html

(8) https://www.redesdamare.org.br/br/artigo/147/espaco-normal-comemora-um-ano-da-inauguracao-de-centro-de-convivencia

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