voltar
Segurança pública, racismo estrutural e necropolítica na Maré

por Camila Barros Moraes e Joelma de Sousa dos Santos

Por volta de 12h, um jovem de 21 anos foi executado no Morro do Timbau. Ele teria sido baleado na perna com um tiro de advertência, se entregou e pediu para ser encaminhado para a delegacia, no entanto, agentes da segurança pública executaram-o com diversos tiros na frente dos moradores do local. (...) Dois homicídios com indícios de execução sumária pelos agentes de segurança pública foram relatados nesta operação. Dois jovens adentraram uma casa no Morro do Timbau, no momento em que foram surpreendidos por policiais. Os rapazes foram torturados e assassinados à facadas pelos policiais em uma casa, em seguida seus corpos foram carregados em lençóis de moradores (...)Dois homens foram mortos durante a operação: um de 27 e um de 29 anos. Um deles foi morto em uma loja por um grupo de policiais. A família alega que o jovem estava em casa e achou que a operação policial havia terminado. No momento em que foi para rua, foi atingido por um disparo na perna e entrou em uma loja para se abrigar quando policiais dispararam mais quatro tiros e o executaram. O outro jovem foi avistado por policiais que se escondiam na laje de uma casa,  dispararam contra o mesmo que foi atingido com um tiro no pescoço, ainda que estivesse desarmado. Todas as mortes são de jovens entre 15 e 29 anos, negros, acusados pelos policiais de envolvimento com grupos armados, sentenciados e executados em um único mês. Os relatos dos moradores dão conta de que os jovens que morreram estavam desarmados ou se renderam, e ainda assim foram executadas pelos policiais que atuavam no território.  

Fonte: Redes da Maré

 

Território:  produção de espaços criminalizados no Rio de Janeiro

Encontramos na cidade espaços diferenciados, que visam definir o lugar de cada pessoa e de cada grupo a partir de um movimento de separação que atribui uma função a cada localidade. As cidades brasileiras são hoje a expressão urbana de uma formação social que nunca conseguiu superar sua herança colonial para construir uma sociedade que distribuísse de forma menos desigual suas riquezas. Sua construção foi marcada pela concentração de terra, renda e poder, pelo exercício do coronelismo ou política do favor e pela aplicação arbitrária da lei. Com a intensidade da urbanização, espaços diferenciados são produzidos, identificando seus moradores de maneira distinta, sendo dividido entre os bairros elitizados e populares.

O surgimento das favelas no Brasil é fruto de um desenvolvimento urbano que se caracteriza pela desigualdade de investimento público nas diferentes regiões da cidade. A segregação urbana ou socioespacial é a reprodução geográfica da segregação social, que está diretamente relacionada com a divisão entre classes sociais e grupos étnico-raciais distintos. As favelas e territórios populares são o principal alvo de reprodução das diversas formas de opressão, exploração e dominação, produzindo espaços de extrema desigualdade, onde a violência física e simbólica e as violações de direitos humanos fundamentais praticadas pelo Estado se apresentam como regra. Esses espaços são historicamente estigmatizados como carentes, precários, violentos e sem ordem, fato que, para o ideário social, justifica as ações repressivas da política de segurança pública.

 

A dimensão racial: segurança pública e necropolítica  

A dinâmica observada nas operações policiais ocorridas no conjunto de favelas da Maré ilustra o conceito de “necropolítica” cunhado pelo filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe, que questiona os limites da soberania quando o controle da vida está nas mãos do Estado. Mbembe (2018) estabelece uma correlação entre o poder e a morte quando o poder político se apropria da morte como objeto de gestão pública, definindo quem morre, como morre e em que condições morre. A “necropolítica” cria um Estado de exceção que se caracteriza por configurações sociopolíticas em que alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos são suspensos em determinadas regiões da cidade. A política de morte estabelecida pela segurança pública, dessa forma, não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. Ela se instaura às margens da legislação e ainda que não esteja dentro da jurisprudência, sua prática rotineira faz com que se institua como um modo de existência, onde o Estado não prioriza a vida da população que mora nas favelas e territórios populares, mas sim o seu extermínio. 

Essa política administrada de morte, reproduzida principalmente pela segurança pública, é uma marca do racismo no Brasil. Mbembe (2018) destaca o componente racial como principal elemento dos corpos matáveis. A população negra, sobretudo, os jovens e moradores de favela historicamente são destituídos de valor, postos como subalternos. E nem sequer quando morrem aos montes geram comoção social.  A formação social  brasileira quando vista a partir de uma perspectiva histórica, demonstra que a questão racial sempre foi, tem sido e continuará sendo um dilema fundamental na formação e transformação desta sociedade. Segundo  Silvio Luiz de Almeida, no livro “O que é racismo estrutural?”, o racismo é estrutural no Brasil, dessa forma, constitui a política, a economia e as instituições. “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea” (ALMEIDA, 2018)

Com base na Constituição Federal de 1988, art 5°, todos somos iguais. Isso configura que o Estado tem como dever constitucional garantir aos cidadãos uma ampla estrutura de proteção, independente de idade, gênero, classe social ou raça. Mas na prática não é o que ocorre. Ao observar os dados do impacto da política de segurança pública, é possível identificar que a desigualdade racial está presente em todos os aspectos, principalmente no encarceramento e na letalidade. Segundo o Anuário da Segurança Pública (2020), publicado em outubro, a quantidade de pessoas negras nas prisões cresceu 14% nos últimos 15 anos, enquanto a de pessoas brancas caiu 19%. Além disso, a população negra é a que mais sofre violência policial e mais morre de forma violenta. Em relação a taxa de homicídios, no Brasil houve um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os brancos houve uma redução de 12,9%, segundo o Atlas da violência 2020.

No conjunto de favelas da Maré, segundo o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, de 2016 a 2019 aconteceram 129 operações policiais na Maré e, em consequência delas, 92 pessoas foram feridas por arma de fogo, 90 pessoas foram assassinadas, escolas ficaram 89 dias sem aula e as unidades de saúde tiveram suas atividades interrompidas por 92 dias. O racismo estrutural brasileiro estabelece a banalização da letalidade do jovem negro e morador de favelas e periferias. A violência historicamente vem interrompendo a vida desses jovens ano após ano. Essa realidade se reproduz na Maré tanto em operações policiais, como nos confrontos entre os grupos armados. Em 2017, 88% dos mortos em decorrência da violência armada na Maré eram pretos ou pardos. Em 2018, esse número subiu para 92%. Já  em 2019, 95% dos mortos eram pretos ou pardos. É importante destacar que neste último ano todos os mortos em operação policial pertenciam a esse grupo étnico racial.

 

Considerações Finais

O Estado brasileiro tende a perpetuar o seu genocidio, a partir de uma política de morte, sobretudo da juventude negra e periférica. As operações policiais na Maré têm utilizado a força como o principal e praticamente único instrumento de intervenção. Intervenções essas caracterizadas pela desqualificação, inconsequência e ilegalidade da ação, que impactam negativamente na vida dos moradores e não garante o direito à segurança pública, pelo contrário, aparecem como principal instrumento de violação de direito. A intersecção entre raça, classe social, pertencimento territorial e perfil etário tem sido determinante na produção dos critérios de suspeição na prática da política de segurança pública brasileira. Jovens negros, pobres e moradores de favelas configuram a parcela da sociedade que sofre com as violações de direitos fundamentais, sobretudo a violação do direito à vida. 

O racismo é estrutural, intrínseco à formação social brasileira e reproduzido pelas instituições. Dessa maneira, só será superado com uma transformação que seja também estrutural. No entanto, diante dos dados de violência é necessário e urgente fortalecer os mecanismos que ampliam formas de acesso à justiça, espaços democráticos e de participação social, ainda que dentro dos limites da democracia burguesa. Interromper a tragédia dos crimes contra a vida é condição necessária para a construção de uma sociedade democrática e com equidade.

 

 

Referências:  

ALMEIDA. Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015. São Paulo, 2020.  Disponível em:< https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf> Acesso em: 18 nov. 2020.

CERQUEIRA, D. et al. Atlas da Violência – 2020. Rio de Janeiro: Ipea/FBSP. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/200826_ri_atlas_da_violencia.pdf> Acesso em: 18 nov. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm: Acesso em: 17 nov. 20202.

LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Grupo “As (im) possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de geografia urbana da UFMG (do original: La producion de l’espace. 4ºed. Páris. Primeira versão, 2006.

MARÉ, Redes da. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 2016

______________ Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 2017

______________ Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 2018

______________ Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 2019

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. n-1,edições, 2018

Fique por dentro das ações da Redes da Maré! Assine nossa newsletter!