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Os vinte e sete anos do Bairro Maré: o que comemorar?

No dia 19 de janeiro de 1994, a Favela da Maré foi transformada em bairro através da lei Municipal 2.119. Isso quer dizer que ela foi considerada como uma área “urbanizada”, ou seja, como um espaço da cidade com infraestrutura e serviços públicos adequados para proporcionar o bem-estar da população local. Passados 27 anos da promulgação da lei, podemos nos perguntar: o que mudou na vida dos moradores? Virar bairro fez realmente com que a Maré fosse tratada como os outros bairros da cidade? O que mudou na Maré a partir do novo status de bairro?

É importante fazer essas perguntas, pois como afirmava o geógrafo e intelectual negro Milton Santos, “o valor do indivíduo, depende, em larga escala, do lugar onde está”. Isso significa que as pessoas são julgadas e “classificadas” numa escala de importância social de acordo com seu lugar de moradia. Ou seja, os territórios geográficos são também marcas sociais e simbólicas que distinguem e distanciam as pessoas e os grupos.

Por isso, se quisermos construir uma cidade melhor para todos, a desigualdade entre os bairros – e a pessoas – precisa ser enfrentada urgentemente. Espaços com menos recursos devem receber atenção especial do poder público, traduzida em investimentos e políticas públicas focadas na elevação dos índices de qualidade de vida da população local.

No caso da Maré, há uma dívida social histórica por parte do Estado que precisa ser reconhecida e recuperada. Na verdade, a ação estatal sempre foi pautada pela omissão e precariedade das políticas públicas e isso se reflete, hoje, mesmo com a Maré sendo considera um bairro, nos problemas e desafios enfrentados pelos moradores.

Esse quadro de abandono por parte do Estado na região da Maré se apresenta desde o início da ocupação da região, ainda nos anos de 1920. Essa ocupação tomou forma a partir de uma colônia de pescadores estabelecida no sopé do Morro do Timbau.

Depois, mais pessoas chegaram à região atraídas pela possibilidade de encontrar o “seu lugar na cidade”, mesmo que para isso tivessem de construir suas casas como “palafitas” sobre as águas da Baia de Guanabara. Foi desse modo que se formaram as primeiras favelas da Maré: Timbau (1940), Baixa do Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948), Parque Maré (1953), Parque Rubens Vaz (1954); Parque Roquete Pinto (1955), Parque União (1961), Praia de Ramos (1962) e Nova Holanda (1962), essa única construída pelo governo do estado do Rio de Janeiro sobre o aterramento da baia. A segunda fase de crescimento está ligada à intervenção do poder público que construiu as seguintes comunidades: Conjunto Esperança (1982), Vila do João (1982), Vila do Pinheiro (1983), Conjunto Pinheiro (1989), Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1989), Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000).

Hoje, a Maré tem o tamanho e a população de uma cidade de médio porte. Localizado entre as principais vias de acesso à cidade, na zona norte, o Bairro Maré é o nono mais populoso do Rio de Janeiro. Porém, apesar de tamanha visibilidade, a Maré ainda é pouco conhecida pelos outros moradores da cidade, ou pior, só é conhecida como um local violento e pobre.

É fato que a violência armada é um dos problemas que mais afligem os moradores. Ela é fruto das desigualdades socioeconômicas na cidade e das políticas de segurança pública historicamente equivocadas e violentas. Mas é injusto olhar a Maré apenas por esse aspecto e reduzi-la à violência. Ela é muito mais do que isso.

A Maré é um espaço de criação cultural e produção de riquezas para a cidade. Seus artistas e coletivos artísticos produzem arte e cultura que se espalham pelo Rio de Janeiro e ajudam a produzir o que é ser carioca. Por outro lado, há uma intensa vida econômica interna que gera renda e trabalho para os moradores – são mais de 3.000 estabelecimentos comerciais. Observar a Maré por esse ângulo ajuda a desmistificar preconceitos e a afirmá-la como um território fundamental da cidade - o que também pode ser dito com relação a todas as favelas.

Por fim, quando fazemos o balanço sobre a transformação da favela da Maré em bairro, fica evidente que os investimentos públicos e a prestação de serviços privados que se espera para um “bairro” da cidade não foram feitos. As desigualdades de tratamento permanecem e se expressam, por exemplo, no baixo IDH (índice de desenvolvimento humano) da Maré (129), quando comparado a outros espaços da cidade. Tudo isso deixa claro que virar bairro não mudou a vida na Maré.

Por isso, o que podemos comemorar no dia 19 de janeiro é muito mais do que a transformação da Maré em bairro, pois isso não aconteceu na prática. O que se deve comemorar é a força, a perseverança e a criatividade dos moradores da Maré que continuam lutando por uma vida melhor, independentemente de seu lugar de moradia ser chamado de bairro ou não.

 

Redes da Maré

Rio de Janeiro, 19.01.2021

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