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Educação na Maré em tempos de coronavírus: prioridade é manter vínculos e acolher estudantes e famílias na pandemia

 

Como crianças e adolescentes participantes de projetos de educação da Redes da Maré – muitas em situação de vulnerabilidade social extrema – estão respondendo aos estímulos de educadores e às atividades virtuais? Para os pequenos, a escola é sinônimo de afeto e acolhimento e, neste período, a manutenção e fortalecimento de vínculos, além de criatividade e constância nas tarefas propostas, têm se mostrado fundamental.

 

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Saudades dos amigos, dos professores, de aprender. Saudades das aulas de educação física, de matemática, de música, de teatro, de inglês, de artes. Saudades até das provas. No singelo relato de crianças do projeto Nenhum a Menos, feito para o vídeo da Semana de Ação Mundial – Educação contra a barbárie, em junho, um resumo afetivo do papel que a escola desempenha no cotidiano de meninos e meninas da Maré.

Com a pandemia e a suspensão das aulas presenciais, uma parte importante do dia destas crianças e adolescentes foi suprimida. Um público cujo desafio, em tempos ditos normais, é justamente superar a dificuldade de frequentar, aprender e permanecer na escola, agora expressa a falta que esta convivência tem feito.

Para a coordenadora do Nenhum a Menos, Inês Di Mare, esta é apenas uma das surpresas positivas que os educadores que acompanham as mais de 100 crianças e adolescentes que fazem parte do projeto tiveram desde que iniciou a pandemia. “Tivemos uma aproximação muito grande com boa parte das famílias neste período. Embora tenha sido uma construção ao longo de seis anos, onde trabalhamos uma relação de confiança com a equipe, na pandemia esta relação se fortaleceu”, comemora.

Parte deste retorno se deu, segundo Inês, pela agilidade com que a equipe de educadores respondeu às limitações tecnológicas impostas: que ferramentas utilizar em um local com sinal de internet ruim, onde um número relevante de famílias sequer possuem um aparelho celular - sendo que, mesmo quando têm, nem sempre há memória suficiente para abrir ou baixar arquivos?

Criatividade e dedicação foram, mais uma vez, as ferramentas utilizadas. Assim, alternativas como chamadas em grupo pelo WhatsApp, vídeos curtos e em linguagem acessível, contação online de histórias e tarefas realizadas em linguagens diversas como rap, poesia e diários, além de vídeos no aplicativo tik tok foram incorporadas ao acompanhamento cotidiano destes alunos e suas famílias.

Receita semelhante foi utilizada pelos adolescentes que participam do Heróis contra a Dengue. Segundo a coordenadora do projeto, Cíntia Reginaldo, algumas iniciativas partiram dos próprios alunos, que chegaram a encenar virtualmente uma peça teatral sobre a doença transmitida pelo mosquito aedes aegypti e seus sintomas. “É muito gratificante ver o que eles conseguem elaborar e produzir sozinhos”, diz. “Eles pesquisam, propõem, tiram fotos, montam vídeos...”

Um dos pilares do Heróis contra a Dengue é justamente visitas presenciais dos adolescentes a casas, escolas e postos de saúde conscientizando a população sobre o contágio e os perigos da dengue - o que fez com que os alunos reinventassem suas atividades durante o período de distanciamento social e alternativas fossem criadas durante o percurso. “As soluções foram surgindo a partir dos encontros e discussões. Foi assim que eles criaram o canal do projeto no YouTube, com o HCDTV, e cards com informações de cuidado e prevenção”, conta.

Outro projeto da Redes da Maré que atende adolescentes e optou pela criação de um canal no YouTube é o Conectando, de educação tecnológica – que atende também jovens adultos. O canal serve como plataforma para o compartilhamento de vídeos educativos em relação ao uso do celular na internet com temas como uso de aplicativos, dicas de segurança, armazenamento e plataformas de ensino.

“O Conectando partiu do desejo e propostas dos próprios jovens, que responderam a um questionário, sobre as atividades que poderiam melhor atende-los durante a pandemia”, conta Aline Galdino, coordenadora do projeto. “O nosso canal surgiu daí e pudemos trabalhar na perspectiva de que os jovens não são apenas consumidores mas também produtores de conteúdo”, conta.

 

Acolhimento e rotina

Não são apenas as crianças que têm sentido falta da escola. Alunos do Preparatório para o Ensino Médio da Redes da Maré também têm mostrado interesse e se envolvido com as atividades virtuais propostas pelos educadores mesmo diante das incertezas quanto ao ano letivo e seus desdobramentos.

“É muito estimulante ver que alguns dos nossos alunos continuam firmes e fortes nas aulas virtuais, nas atividades interdisciplinares e nas lives que temos realizado. É gratificante ver que mesmo com todas as dificuldades - e são muitas - alguns seguem dedicados, pedindo pelas atividades, curtindo, agradecendo pelas ações propostas, fazendo os exercícios que os educadores passam...”, relata Aline Ádria, coordenadora dos cursos preparatórios da Redes da Maré (6º ano e Ensino Médio). “Temos alunos que perderam pessoas queridas, familiares, para a covid-19 e que veem no Preparatório um espaço de segurança, acolhimento e afeto”, reconhece.  

 

E, como nos demais projetos, criatividade e compromisso por parte dos educadores são ingredientes básicos da receita. Assim, atividades como criação colaborativa de uma lenda da Maré, na qual um aluno continua a história iniciada por um colega, tarde de jogos com mímica e perguntas e respostas com conteúdos de disciplinas de Exatas (Matemática, Química e Física), lives sobre racismo e saraus culturais com apresentação de poemas e músicas têm feito parte da rotina de estudos.

“Temos uma atividade fixa do projeto onde os alunos circulam pela Maré e conhecem aspectos da sua história, formação, lendas e envolve principalmente educadores de História, Geografia, Biologia e Formação em Cidadania. Com a pandemia, não tivemos a oportunidade de realizá-la, então resolvemos fazer uma “aula campo imaginária pela Maré”, conta Aline. “Foi uma tarde incrível! Utilizamos fotos, histórias locais e percebemos que essas atividades, que aliam conhecimento e diversão, estimulam a participação dos alunos”.

Entre os alunos do Conectando, o estímulo também acontece pela participação no desafio promovido pela ONG Recode, onde cada equipe participante tem o objetivo de mapear e resolver um problema em sua comunidade por meio da tecnologia. Durante a pandemia, estão sendo realizadas mentorias dos educadores com as três equipes participantes do desafio com o intuito de orientar e preparar os jovens para a final. “Estas ações contribuíram efetivamente para a manutenção de vínculo e para que os jovens se sentissem incluídos durante a pandemia”, ressalta Aline Galdino.

No caso dos alunos do Preparatório para o 6º ano, a principal ferramenta de comunicação é o grupo de WhatsApp formado por pais e/ou mães, por causa da faixa etária dos alunos, entre 10 e 12 anos. Eles fazem exercícios e enviam fotos do caderno para a educadora no particular, mantendo a privacidade dos alunos em relação às tarefas. Plantões online também são feitos por WhatsApp para que os alunos tirem dúvidas quanto ao conteúdo e exercícios.

Em todos os projetos, o desafio de agregar o máximo possível de alunos e evitar a evasão das crianças e jovens – tarefa nada fácil frente à extensa lista de problemas e questões enfrentadas pelas famílias de favelas e periferias, sobretudo com o agravamento das desigualdades sociais gerada pela pandemia.

“A Redes da Maré segue adaptando seus projetos de maneira remota buscando manter uma relação próxima com o maior número possível de alunos e nossa equipe mobilizada e envolvida. Enfatizo que, obviamente, não conseguimos a atender todos os alunos dos projetos, apesar de nossos esforços, mas consideramos fundamental esta manutenção de vínculos durante este período difícil da pandemia”, avalia Andreia Martins, diretora da Redes da Maré.

Atendimento integral

Da falta de acesso a tecnologias (internet, aparelhos celulares, computadores etc) à perda de renda de trabalhadores e trabalhadoras, passando pelo acúmulo de funções domésticas e de cuidados com outros familiares, adoecimento mental, perda de pessoas próximas pela covid, realização de operações policiais (suspensas recentemente a partir de ação proposta por diferentes organizações, entre elas a Redes da Maré), muitos são os problemas enfrentados pelos alunos e suas famílias – o que impede que a totalidade de alunos sejam atendidos de forma permanente. 

Para auxiliar famílias e alunos no período e como parte da metodologia transversal de ações adotada pela Redes da Maré, foram fornecidas, como parte da campanha Maré diz Não ao Coronavírus, cestas básicas e kits de higiene e oferecido apoio psicossocial neste período em que o desafio da sobrevivência bateu à porta rapidamente, tornando-se prioridade e urgência para grande parte dos moradores da Maré.

 

“Com a pandemia, nos deparamos com o agravamento de questões já presentes no território e tivemos que lidar com elas, não havia como separar o desafio da educação das crianças, adolescentes, jovens e adultos da Maré sem encarar toda a complexidade que envolve o território, incluindo a falta de acesso a bens e serviços tecnológicos que oportunizam a participação nas atividades remotas oferecidas não só pela Redes da Maré, mas pelas próprias escolas”, relata Kelly Marques, coordenadora do Eixo Educação. “Isso sem falar da falta de saneamento básico e água em muitas casas da favela, inviabilizando a principal maneira de combater a pandemia: a higiene”, finaliza.

 

Uma situação difícil que tem sido enfrentada coletivamente, com apoios mútuos, manutenção de vínculos e aprofundamento de afetos. Valorizando o que é importante para cada um, como nos mostra o vídeo produzido pelos alunos do Nenhum a Menos, onde eles “apresentam” seus animais de estimação – provando, de forma lúdica e prática, que educação também é nutrir belezas e afetos cotidianos, apesar das adversidades. 


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