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Educação na Maré em tempos de coronavírus: criatividade e dedicação para superar desafios

  

No mês em que se comemora o Dia do Estudante, iniciamos a publicação de uma série de artigos sobre o desafio de manter projetos de educação na Maré diante das dificuldades impostas pela pandemia – sobretudo em territórios de favelas e periferias. Desigualdades sociais, de raça e de gênero têm sido escancaradas no Brasil e no mundo e manter ações de atendimento e acolhimento a estas populações com criatividade, empatia, afeto e uma grande dose de dedicação têm sido crucial neste período.

 

A pandemia do novo coronavírus escancarou desigualdades sociais e a falta de acesso a direitos básicos, que impactam diretamente na adesão dos estudantes ao ensino à distância – algo tão difundido e normalizado nestes tempos. Muitos alunos simplesmente não conseguem estudar em casa – seja por falta de espaços de físicos adequados, seja por novas responsabilidades que tiveram que assumir durante a pandemia, seja pelo acesso desigual às tecnologias e à internet de qualidade.

Em que pesem os movimentos e declarações de autoridades sobre o possível retorno das aulas - estudos científicos, como o publicado pela FioCruz no dia 23 de julho, apontam que ainda não é hora de voltar às atividades presenciais. E independente da data desta retomada, uma coisa é certa: estudantes de favelas e periferias têm vivenciado este momento de forma bem diferente daqueles que moram em áreas mais nobres e estruturadas da cidade

Na Maré, o desafio de manter crianças e jovens motivados, assistindo aulas remotas, fazendo tarefas e acompanhando atividades propostas pelas escolas é enorme. Começando pelo básico: apenas 36,7% dos domicílios da Maré possuem acesso à internet e 42,4% têm computador, segundo dados do Censo Maré 2013. E mesmo entre os que possuem internet, a queixa generalizada é que a qualidade é muito ruim.

 

Com mais de uma dezena de projetos na área de educação - que vão de cursos preparatórios para o Pré- Vestibular, Ensino Médio e 6º Ano até cursos profissionalizantes como o Conectando e o Jovem Aprendiz, passando por educação de jovens e adultos, reinserção de crianças nas escolas e cursos de idiomas – a Redes da Maré atende cerca de mil crianças, adolescentes, jovens e adultos e tem mantido suas atividades durante a pandemia, adaptando suas ações a partir das demandas e especificidades de cada público.

Os projetos abrigam vários perfis de alunos, desde mulheres adultas sendo alfabetizadas até jovens às vésperas do Enem passando por crianças em idade escolar fora da escola e adolescentes que estão aprendendo uma profissão. “Entre eles, há uma questão central em comum: a manutenção de vínculos com as alunas e alunos fornecendo suporte para além dos conteúdos dados em sala de aula”, explica Andréia Martins, diretora da Redes da Maré.

 

Criatividade, empenho e dedicação não faltam para os tecedores que estão à frente das ações. Realização de atividades culturais, lúdicas e com abordagem de temas atuais, como lives, saraus, aulas com convidados externos – como no caso da antropóloga Lilia Schwarcz para o Curso Pré Vestibular (CPV) - passeios virtuais e iniciativas dos próprios jovens, como no caso do canal do YouTube criado pelos alunos do projeto Herois contra a Dengue são alguns exemplos de atividades que têm acontecido frequentemente no período.

“Temos lidado com o desafio de passar o conteúdo para os alunos em uma realidade de acesso precário à internet. Esta foi uma dificuldade que mapeamos no início da pandemia e que se confirmou”, explica Luana Silveira, coordenadora do Curso Pré-Vestibular da Redes da Maré, que conta com 241 alunos, sendo que 30% deles não tem acesso à internet. “O ensino à distância não é uma prática da instituição e, com a adoção deste método durante a pandemia, vimos que muitas desigualdades foram acentuadas”, avalia.


Mesmo assim, direção e educadores encararam o desafio e têm desenvolvido atividades com os alunos, inclusive com o objetivo de manter vínculos com os jovens neste momento difícil. “Passar conteúdos é importante, mas estamos levando para eles também a discussão de temas atuais, sobre questões onde é fundamental um olhar crítico dos jovens. E nesta proposta, entram as aulas transdisciplinares, onde educadores de várias áreas conduzem atividades em comum, o que têm dado muito certo”, conta Luana.

Não à toa, o CPV fez parte do movimento Adia Enem, por entender que os estudantes moradores de favelas – para além das desigualdades históricas que formam uma barreira quase intransponível de acesso aos mais pobres à universidade – estão em situação ainda mais desequilibrada na preparação para o próximo Exame Nacional de Ensino Médio.

 

“Estamos buscando ser criativos para manter os jovens focados, tenho feito vídeos curtos, tipo pílulas, com temas provocativos para os alunos, preparado ‘aulões’ com outros professores, pesquisando assuntos atuais e relevantes para propor para eles...”, relata o educador dos preparatórios para o 6º e 9º ano e pré-vestibular da Redes da Maré e conselheiro tutelar Daniel Remilik. “E mesmo as aulas sendo virtuais, nossa sala é um espaço seguro pros alunos, um lugar onde eles falam de seus desafios e realidades e são apoiados por colegas e professores”.

 

Em cada projeto, necessidades específicas

 

E para quem, já na maturidade, nunca havia frequentado as salas de aula e teve o sonho adiado pela pandemia? É o caso das mulheres do projeto Escreva Seu Futuro, de alfabetização de adultas. “Elas nunca tiveram uma relação continuada com o aprendizado e se dispuseram, já na idade adulta, a conciliar o curso com responsabilidades familiares, domésticas e profissionais. Ao dar este novo passo na vida, tiveram que lidar com as aulas suspensas logo no início do curso, que começou uma semana antes do isolamento social”, conta Alessandra Pinheiro, coordenadora do Escrevendo seu Futuro.

 

A partir do momento em que detectou que o isolamento social seria prolongado, a equipe de coordenadores e educadores se reuniu para traçar estratégias pedagógicas para este público, que têm características especiais: nem todas têm acesso à internet, autonomia para utilizar o celular, contas em redes sociais ou de email. Algumas sequer tem um aparelho próprio de celular.  

A solução foi concentrar o contato em um grupo de WhatsApp, ferramenta que as alunas conseguem usar com mais independência por ser mais popular e ter recursos de áudio e vídeo. “Temos trabalhado com conteúdos de informação sobre a doença, campanhas de prevenção e propostas de atividades, mas sobretudo focamos na manutenção dos vínculos com estas mulheres”, explica Alessandra.

As educadoras do curso têm ficado disponíveis em caso de dúvidas das alunas e orientação nas tarefas, além de ficar com um olhar atento às demandas apresentadas no grupo. O retorno, relata, é mais do que compensador: “as mulheres nutrem diariamente a equipe, sinalizando que não vão desistir do curso e nem abrir mão, mais uma vez, de seus direitos e sonhos”.

Outro público com características específicas são os adolescentes que participam do projeto Jovem Aprendiz, de ensino profissionalizante, numa parceria da Redes da Maré com o Senai. A resposta ao desafio de continuar com o processo de aprendizagem à distância veio por meio de atividades de formação continuada, acompanhamento pedagógico das aulas teóricas do Senai e das atividades escolares, além de atendimento social dos jovens e seus familiares.

“Uma ação que incorporamos ao nosso planejamento foram as reuniões quinzenais com os familiares dos aprendizes. É um espaço de troca para que eles compartilhem suas angústias e estratégias neste momento de crise”, relata Núbia Alves, coordenadora do projeto Jovem Aprendiz. “Nestas reuniões damos retorno aos familiares sobre as atividades planejadas e solicitamos que eles estimulem os aprendizes a participarem”, conta.  

Além dos conteúdos do curso de qualificação profissional realizado pelo Senai, os jovens têm realizado atividades de formação continuada com ferramentas como filmes, textos, música e debates com temas muitas vezes propostos pelos próprios alunos. A aposta é, mais uma vez, na manutenção de vínculos e na motivação dos jovens, já que o risco de evasão pós pandemia tem sido uma preocupação de especialistas, universidades e instituições ligadas à educação.

“Enquanto aguardamos a avaliação das autoridades sanitárias e de saúde sobre o momento seguro para a volta às aulas presenciais, a Redes da Maré segue com seus projetos de maneira remota, sempre acreditando que a educação de qualidade é uma das principais chaves para que desigualdades, em todos os níveis, sejam superadas”, finaliza Andréia Martins.

 
 
 

 

Educação na Maré em tempos de coronavírus: prioridade é manter vínculos e acolher estudantes e famílias na pandemia

 

Como crianças e adolescentes participantes de projetos de educação da Redes da Maré – muitas em situação de vulnerabilidade social extrema – estão respondendo aos estímulos de educadores e às atividades virtuais? Para os pequenos, a escola é sinônimo de afeto e acolhimento e, neste período, a manutenção e fortalecimento de vínculos, além de criatividade e constância nas tarefas propostas, têm se mostrado fundamental

 

Saudades dos amigos, dos professores, de aprender. Saudades das aulas de educação física, de matemática, de música, de teatro, de inglês, de artes. Saudades até das provas. No singelo relato de crianças do projeto Nenhum a Menos, feito para o vídeo da Semana de Ação Mundial – Educação contra a barbárie, em junho, um resumo afetivo do papel que a escola desempenha no cotidiano de meninos e meninas da Maré.

Com a pandemia e a suspensão das aulas presenciais, uma parte importante do dia destas crianças e adolescentes foi suprimida. Um público cujo desafio, em tempos ditos normais, é justamente superar a dificuldade de frequentar, aprender e permanecer na escola, agora expressa a falta que esta convivência tem feito.

Para a coordenadora do Nenhum a Menos, Inês Di Mare, esta é apenas uma das surpresas positivas que os educadores que acompanham as mais de 100 crianças e adolescentes que fazem parte do projeto tiveram desde que iniciou a pandemia. “Tivemos uma aproximação muito grande com boa parte das famílias neste período. Embora tenha sido uma construção ao longo de seis anos, onde trabalhamos uma relação de confiança com a equipe, na pandemia esta relação se fortaleceu”, comemora.

Parte deste retorno se deu, segundo Inês, pela agilidade com que a equipe de educadores respondeu às limitações tecnológicas impostas: que ferramentas utilizar em um local com sinal de internet ruim, onde um número relevante de famílias sequer possuem um aparelho celular - sendo que, mesmo quando têm, nem sempre há memória suficiente para abrir ou baixar arquivos?

Criatividade e dedicação foram, mais uma vez, as ferramentas utilizadas. Assim, alternativas como chamadas em grupo pelo WhatsApp, vídeos curtos e em linguagem acessível, contação online de histórias e tarefas realizadas em linguagens diversas como rap, poesia e diários, além de vídeos no aplicativo tik tok foram incorporadas ao acompanhamento cotidiano destes alunos e suas famílias.

Receita semelhante foi utilizada pelos adolescentes que participam do Heróis contra a Dengue. Segundo a coordenadora do projeto, Cíntia Reginaldo, algumas iniciativas partiram dos próprios alunos, que chegaram a encenar virtualmente uma peça teatral sobre a doença transmitida pelo mosquito aedes aegypti e seus sintomas. “É muito gratificante ver o que eles conseguem elaborar e produzir sozinhos”, diz. “Eles pesquisam, propõem, tiram fotos, montam vídeos...”

Um dos pilares do Heróis contra a Dengue é justamente visitas presenciais dos adolescentes a casas, escolas e postos de saúde conscientizando a população sobre o contágio e os perigos da dengue - o que fez com que os alunos reinventassem suas atividades durante o período de distanciamento social e alternativas fossem criadas durante o percurso. “As soluções foram surgindo a partir dos encontros e discussões. Foi assim que eles criaram o canal do projeto no YouTube, com o HCDTV, e cards com informações de cuidado e prevenção”, conta.

Outro projeto da Redes da Maré que atende adolescentes e optou pela criação de um canal no YouTube é o Conectando, de educação tecnológica – que atende também jovens adultos. O canal serve como plataforma para o compartilhamento de vídeos educativos em relação ao uso do celular na internet com temas como uso de aplicativos, dicas de segurança, armazenamento e plataformas de ensino.

“O Conectando partiu do desejo e propostas dos próprios jovens, que responderam a um questionário, sobre as atividades que poderiam melhor atende-los durante a pandemia”, conta Aline Galdino, coordenadora do projeto. “O nosso canal surgiu daí e pudemos trabalhar na perspectiva de que os jovens não são apenas consumidores mas também produtores de conteúdo”, conta.

 

Acolhimento e rotina

Não são apenas as crianças que têm sentido falta da escola. Alunos do Preparatório para o Ensino Médio da Redes da Maré também têm mostrado interesse e se envolvido com as atividades virtuais propostas pelos educadores mesmo diante das incertezas quanto ao ano letivo e seus desdobramentos.

“É muito estimulante ver que alguns dos nossos alunos continuam firmes e fortes nas aulas virtuais, nas atividades interdisciplinares e nas lives que temos realizado. É gratificante ver que mesmo com todas as dificuldades - e são muitas - alguns seguem dedicados, pedindo pelas atividades, curtindo, agradecendo pelas ações propostas, fazendo os exercícios que os educadores passam...”, relata Aline Ádria, coordenadora dos cursos preparatórios da Redes da Maré (6º ano e Ensino Médio). “Temos alunos que perderam pessoas queridas, familiares, para a covid-19 e que veem no Preparatório um espaço de segurança, acolhimento e afeto”, reconhece.  

 

E, como nos demais projetos, criatividade e compromisso por parte dos educadores são ingredientes básicos da receita. Assim, atividades como criação colaborativa de uma lenda da Maré, na qual um aluno continua a história iniciada por um colega, tarde de jogos com mímica e perguntas e respostas com conteúdos de disciplinas de Exatas (Matemática, Química e Física), lives sobre racismo e saraus culturais com apresentação de poemas e músicas têm feito parte da rotina de estudos.

“Temos uma atividade fixa do projeto onde os alunos circulam pela Maré e conhecem aspectos da sua história, formação, lendas e envolve principalmente educadores de História, Geografia, Biologia e Formação em Cidadania. Com a pandemia, não tivemos a oportunidade de realizá-la, então resolvemos fazer uma “aula campo imaginária pela Maré”, conta Aline. “Foi uma tarde incrível! Utilizamos fotos, histórias locais e percebemos que essas atividades, que aliam conhecimento e diversão, estimulam a participação dos alunos”.

Entre os alunos do Conectando, o estímulo também acontece pela participação no desafio promovido pela ONG Recode, onde cada equipe participante tem o objetivo de mapear e resolver um problema em sua comunidade por meio da tecnologia. Durante a pandemia, estão sendo realizadas mentorias dos educadores com as três equipes participantes do desafio com o intuito de orientar e preparar os jovens para a final. “Estas ações contribuíram efetivamente para a manutenção de vínculo e para que os jovens se sentissem incluídos durante a pandemia”, ressalta Aline Galdino.

No caso dos alunos do Preparatório para o 6º ano, a principal ferramenta de comunicação é o grupo de WhatsApp formado por pais e/ou mães, por causa da faixa etária dos alunos, entre 10 e 12 anos. Eles fazem exercícios e enviam fotos do caderno para a educadora no particular, mantendo a privacidade dos alunos em relação às tarefas. Plantões online também são feitos por WhatsApp para que os alunos tirem dúvidas quanto ao conteúdo e exercícios.

Em todos os projetos, o desafio de agregar o máximo possível de alunos e evitar a evasão das crianças e jovens – tarefa nada fácil frente à extensa lista de problemas e questões enfrentadas pelas famílias de favelas e periferias, sobretudo com o agravamento das desigualdades sociais gerada pela pandemia.

“A Redes da Maré segue adaptando seus projetos de maneira remota buscando manter uma relação próxima com o maior número possível de alunos e nossa equipe mobilizada e envolvida. Enfatizo que, obviamente, não conseguimos atender todos os alunos dos projetos, apesar de nossos esforços, mas consideramos fundamental esta manutenção de vínculos durante este período difícil da pandemia”, avalia Andreia Martins, diretora da Redes da Maré.

Atendimento integral

Da falta de acesso a tecnologias (internet, aparelhos celulares, computadores etc) à perda de renda de trabalhadores e trabalhadoras, passando pelo acúmulo de funções domésticas e de cuidados com outros familiares, adoecimento mental, perda de pessoas próximas pela covid, realização de operações policiais (suspensas recentemente a partir de ação proposta por diferentes organizações, entre elas a Redes da Maré), muitos são os problemas enfrentados pelos alunos e suas famílias – o que impede que a totalidade de alunos sejam atendidos de forma permanente. 

Para auxiliar famílias e alunos no período e como parte da metodologia transversal de ações adotada pela Redes da Maré, foram fornecidas, como parte da campanha Maré diz Não ao Coronavírus, cestas básicas e kits de higiene e oferecido apoio psicossocial neste período em que o desafio da sobrevivência bateu à porta rapidamente, tornando-se prioridade e urgência para grande parte dos moradores da Maré.

 

“Com a pandemia, nos deparamos com o agravamento de questões já presentes no território e tivemos que lidar com elas, não havia como separar o desafio da educação das crianças, adolescentes, jovens e adultos da Maré sem encarar toda a complexidade que envolve o território, incluindo a falta de acesso a bens e serviços tecnológicos que oportunizam a participação nas atividades remotas oferecidas não só pela Redes da Maré, mas pelas próprias escolas”, relata Kelly Marques, coordenadora do Eixo Educação. “Isso sem falar da falta de saneamento básico e água em muitas casas da favela, inviabilizando a principal maneira de combater a pandemia: a higiene”, finaliza.

 

Uma situação difícil que tem sido enfrentada coletivamente, com apoios mútuos, manutenção de vínculos e aprofundamento de afetos. Valorizando o que é importante para cada um, como nos mostra o vídeo produzido pelos alunos do Nenhum a Menos, onde eles “apresentam” seus animais de estimação – provando, de forma lúdica e prática, que educação também é nutrir belezas e afetos cotidianos, apesar das adversidades. 


 

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