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Entrevista • Maré de Sabores completa 11 anos de trajetória

Por Andréa Blum e Jéssica Pires

O bufê mareense consolida sua proposta de levar culinária artesanal, local e afetiva para toda a cidade, aliada à formação em gastronomia e geração de renda para mulheres da Maré

  

Rio de Janeiro, 09 de maio de 2021

A Redes da Maré apresenta uma entrevista com a chef Mariana Aleixo, fundadora do bufê Maré de Sabores e indicada, em 2021, entre os dois brasileiros na lista do “The World´s 50 Best”, importante premiação mundial que revela jovens empreendedores que contribuem com o futuro do mundo gastronômico. Mariana, 33 anos, é nascida e criada no Parque Maré, mestre e doutora em engenharia de produção na Coppe/UFRJ e graduada em gastronomia.

A partir da vivência com o território, fez suas escolhas acadêmicas e profissionais. Uma das mais antigas lembranças de Mariana vem da tradição de uma cultura muito predominante na Maré: se reunir e celebrar com a comida nordestina. “Meus pais foram empreendedores da Maré, então, meus irmãos e eu sempre estivemos juntos com eles na loja ou na casa dos nossos avós, que era temperada de comida nordestina”, conta.

Ela compartilhou conosco um pouco da experiência e da consolidação desta iniciativa, que forma mulheres da Maré e fomenta a geração de renda, autonomia e empoderamento feminino, com a produção e entrega de um cardápio artesanal com receitas brasileiras que revelam traços da cultura e ancestralidade deste território, majoritariamente habitado por uma população nordestina. Conheça aqui esta história. 



Redes da Maré - Qual a importância da gastronomia para a Maré?

Mariana Aleixo - A gastronomia tem um importante papel na dinâmica social da Maré. É um tema relevante para o desenvolvimento do território, já que o direito à alimentação adequada e à soberania alimentar e nutricional consiste no acesso físico e econômico de todas as pessoas aos alimentos e recursos de forma contínua. A gastronomia na Maré pensada de forma mais ampla motiva uma reflexão sobre as possibilidades dos moradores construírem uma relação com a alimentação para além de seu sentido fisiológico, e novas possibilidades para construir e perseguir caminhos no campo do conhecimento, bem como no exercício dessa profissão. 

A gastronomia também fala da nossa forte vida comunitária e das relações sócio afetivas estabelecidas no território. E é justamente em torno da sociabilidade que os empreendimentos na Maré adquirem sua configuração e se afirmam, com identidade, perante a clássica construção da relação oferta/necessidade/consumo. Nesses espaços de sociabilidade, o setor gastronômico se destaca como a mais potente atividade econômica da Maré, tanto no que diz respeito à oferta de bens e serviços para o consumo local, quanto para a geração de trabalho e renda entre os moradores.
 

Como nasceu o Maré de Sabores?

O projeto Maré de Sabores foi criado em 2010, a partir da demanda de mães de alunos do CIEP Operário Vicente Mariano, na Baixa do Sapateiro, onde a Redes da Maré atuava com projetos de Educação. Nas reuniões promovidas na época, as mães apresentaram o interesse na qualificação profissional em gastronomia e a vontade de construir uma nova relação com o alimento e hábitos alimentares para suas famílias.

A partir disso, o Maré de Sabores nasce e passa a desenvolver, primeiro, cursos de gastronomia com dois módulos: básico e avançado. A proposta foi sendo desenvolvida, unificando questões importantes para o desempenho da profissão, com aulas sobre produção e manipulação de alimentos, estratégias de venda para o consumidor e empreendedorismo. 



Como funciona a formação dessas mulheres da Maré?

O curso de gastronomia qualifica suas participantes a trabalhar como cozinheiras, mas principalmente a abrirem seus próprios negócios, de forma individual ou coletiva, promovendo o aumento de sua renda. Com duração de oito meses, o curso oferece, além das aulas de gastronomia, oficinas de Gênero e Sociedade, onde as alunas são encorajadas a refletir sobre autonomia, autoestima e o papel que ocupam na sociedade, além de oferecer acolhimento sociojurídico, com possibilidades de acesso a psicólogas, assistentes sociais e advogadas.

Ao longo de onze anos, o Maré de Sabores já formou mais de 800 mulheres de todas as favelas da Maré e possibilitou a entrada de várias delas no mercado de trabalho. Não impactamos apenas as mulheres que trabalham no bufê, mas também as que formamos em nossos cursos e suas famílias, pois a partir dessas experiências outras possibilidades se abrem para cada uma delas.

Conseguimos, com os rendimentos do bufê, investir em uma cozinha industrial, que foi montada na Casa das Mulheres da Maré, onde realizamos as formações, cursos e oficinas e toda a produção do bufê. E ainda conseguimos, recentemente, adquirir uma van, que substituiu a nossa kombi e nos permite acessar ainda mais espaços da cidade com mais qualidade e agilidade de entrega. 


Conte um pouco mais da trajetória do bufê e do projeto. Quais foram os momentos mais marcantes dessa trajetória?  

A qualificação profissional do projeto Maré de Sabores foi sendo ampliada da formação para a geração de trabalho e renda e, com isso, criamos o bufê Maré de Sabores, composto por mulheres da Maré que já tinham sido certificadas pelas oficinas. Hoje, elas integram um coletivo que oferece serviço de catering para instituições, universidades, eventos sociais e entrega em delivery para pessoas físicas. As mulheres são remuneradas por seu trabalho direto, o que lhes proporciona um aumento de renda e autonomia econômica, em muitos casos quebrando, inclusive, o ciclo de dependência financeira e de violência doméstica, vivido por algumas delas. É notável a melhora de suas condições de vida, para além do aspecto financeiro. O grupo é reforçado enquanto coletivo e individualmente elas se sentem valorizadas em suas comunidades, autônomas e cientes de seus direitos.

E como se deu a formação do cardápio?

Em relação ao processo de formação do nosso cardápio, foi definitivo o fato da Maré ter em sua base de origem famílias nordestinas com forte proximidade afetiva com a culinária. O bufê realiza um trabalho de valorização da diversidade da gastronomia da Maré e brasileira, e traz as raízes dessas histórias para o seu fazer artístico e cultural. 

O cardápio do bufê tem como princípio oferecer produtos que promovam:
1) Hábitos alimentares conscientes e saudáveis;
2) Aproveitamento integral dos alimentos e não utilização de produtos ultraprocessados;
3) Produção artesanal de produtos;
4) Preferência por produtos in natura e de alimentos orgânicos;
5) Resgate e promoção da cultura alimentar local com a inclusão de receitas e ingredientes tradicionais da Maré.


 

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Quantas ações e eventos vocês já fizeram?

Desde 2010, o Maré de Sabores já produziu mais de 2.500 eventos, entre coffee break, brunch, almoço, coquetel, jantar e alimentação terceirizada para empresas. Atendemos mais de 175 mil convidados, gerando renda direta para mais de 220 famílias da Maré. 

 

O que representa para o público poder consumir os produtos e serviços do Maré de Sabores? 

O bufê possibilita aos nossos consumidores ter uma experiência antropofágica da Maré. Oferecemos uma outra lógica de representação da cidade, privilegiando as mulheres da Maré, nossa cultura nordestina que constrói e constitui o Rio de Janeiro e ainda rompe com os estigmas estabelecidos de forma racista e preconceituoso para as favelas, fundando um lugar de potência nas favelas e periferias e que se expande para toda a cidade.

O Maré de Sabores é um convite a escolhas alimentares mais conscientes que podem impactar na qualidade de vida de quem consome e colaborar para uma cadeia de sustentabilidade para a Maré, ajudando o processo de democratização da cidade e impulsionando uma alternativa empreendedora que pode ser replicada em outros territórios de periferia.

 

E durante a pandemia, qual foi o aprendizado do bufê com o trabalho com na campanha ‘Maré diz NÃO ao Coronavírus’, e o apoio a famílias em isolamento seguro com o Conexão Saúde?

A campanha ‘Maré diz NÃO ao Coronavírus’ possibilitou ao Maré de Sabores uma reflexão sobre a sua ação. A crise também nos fez discutir a garantia de direitos dos moradores da Maré, principalmente das mulheres, o acesso à alimentação adequada, saudável e de qualidade, de forma contínua. 

Primeiro, nos engajamos no desenvolvimento de uma frente de Segurança Alimentar, a partir da campanha que, como uma de suas ações, entregou cestas de alimentos e refeições prontas para garantir uma alimentação adequada à população da Maré, que ficou ainda mais vulnerável com a pandemia. Neste sentido, em 2020, o Maré de Sabores produziu mais de 65 mil refeições para a população em situação de rua da Maré.

Com isso, brotamos como possibilidade para garantir refeições para famílias em extrema vulnerabilidade social, como parte das ações da campanha,  mantivemos a renda para as mulheres do bufê e, ainda, repensamos e adequamos os nossos serviços para um novo público consumidor final.

Também estendemos a produção ao programa de apoio ao isolamento domiciliar seguro, do projeto ‘Conexão Saúde: de olho na Covid’, uma parceria da Redes da Maré com Fiocruz, Dados do Bem, SAS Brasil, União Rio e Conselho Comunitário de Manguinhos. 

Como parte do apoio a pessoas com Covid-19, o projeto oferece uma alimentação saudável e pronta para a família poder atravessar a recuperação neste período. Por meio dessa ação, desde setembro de 2020, mais de 900 pessoas receberam o apoio de refeições feitas pelo Maré de Sabores (almoço, jantar e lanche durante o período de recuperação para a família). O Maré de Sabores produziu e distribuiu, no total, 12 mil refeições para este apoio, até o final de maio de 2021.


O bufê está entre as 10 ações mundiais a receber menção honrosa pelo ‘Basque Culinary World Prize’, pela atuação durante a pandemia. 

Ação das refeições durante a campanha

 

  

Para 2021, o que podemos esperar do bufê?

Em 2021, as aulas do Maré de Sabores foram retomadas em formato híbrido, os conteúdos técnicos são enviados para as alunas através do Whatsapp e as aulas práticas são realizadas com horários marcados dentro da produção de refeições do buffet. São duas alunas por turno, divididas entre os dias da semana.

Seguimos atendendo empresas e eventos, mas sentimos uma queda brutal em 2020. Por isso, diversificamos nosso modelo de negócios e aprimoramos nosso delivery e cardápio on-line, focando também nas refeições para pessoas e famílias. Nossos alimentos são produzidos e entregues semanalmente por toda a cidade. 

 

O que o Maré de Sabores deixa de legado para a vida das mulheres da Maré nesses 11 anos de atuação?

As mulheres vêm ocupando, historicamente, diferentes lugares e funções. Até hoje, são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado com filhos e familiares. Vêm também ocupando o mercado de trabalho e, por consequência, o número de domicílios cuja responsável financeira é a mulher vem aumentando vertiginosamente. Só na Maré, 45% dos domicílios têm mulheres como responsáveis financeiras. 62% das mulheres da Maré entre 25 e 29 anos de idade já são mães.

Portanto, muitas vezes, as mulheres da Maré encaram jornadas triplas, ocupando diferentes papéis sociais e lugares estratégicos para a formação e transformação social. Por isso, são figuras essenciais para fomentar uma alimentação melhor.  

Com o bufê Maré de Sabores, é possível revelar o cotidiano da favela, enfrentando, desse modo, o conjunto de representações e ações distorcidas sobre quem são e como empreendem os moradores de territórios populares. O Maré de Sabores possibilita a construção, a longo prazo, do fortalecimento de políticas públicas que promovam o desenvolvimento das mulheres e do setor de alimentação na Maré e é uma referência para outras áreas periféricas do mundo.  

Nós, mulheres da Maré, possuímos o desafio de pautar, em nosso fazer diário, temas como gênero, raça e classe e, por isso, sabemos como é importante  estarmos comprometidas com uma agenda positiva para contribuir com políticas públicas para as mulheres e no enfrentamento estrutural das desigualdades. Acreditamos que nesses 11 anos o Maré de Sabores vem colaborando com essa construção. E seguiremos firmes nesse propósito.

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